O Teatro Académico de Gil Vicente e a cidade de Coimbra (IV)

Manuel Portela
(15 de Janeiro de 2008)



Referi na primeira parte deste texto o contributo do TAGV para a política cultural de Coimbra. A segunda e a terceira partes foram dedicadas, respectivamente, ao contributo do TAGV para a política educativa e para a política artística de Coimbra. Esta quarta (e última parte) é dedicada à relação do TAGV com os agentes económicos de Coimbra.



O Mecenato Cultural traduz-se num conjunto de incentivos de natureza fiscal que concedem reduções nos impostos a quem se disponibilize a contribuir, sem quaisquer contrapartidas, para o desenvolvimento cultural do país. Estes benefícios são atribuídos a pessoas singulares e colectivas que apoiem, através da concessão de donativos, em dinheiro ou em espécie, entidades que exerçam acções relevantes para o desenvolvimento da cultura, das artes, da educação e da ciência. São estes, genericamente, os princípios explicitados no preâmbulo da legislação. Trata-se, no fundo, de encorajar as empresas e os agentes económicos, em geral, a investirem uma parte do seu rendimento anual em domínios de acção que revertem a favor da comunidade no seu todo. Ultrapassando o limite restrito do serviço que presta e dos bens que produz, a marca e a identidade da empresa ou instituição privada associa-se a uma iniciativa de reconhecido interesse público.

Apesar de ter beneficiado de um ou dois apoios pontuais na última década, o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) nunca tentou captar patrocínios de forma sistemática. Importava por isso confirmar se aquela escassez de parcerias se devia à indiferença dos agentes económicos e do tecido empresarial local à produção artística e cultural, ou se esse facto se devia também à inércia do próprio Teatro e à sua incapacidade de comunicar a importância pública da sua actividade. Em Outubro de 2006, o TAGV instituiu um Programa de Mecenato Cultural, com o objectivo de captar apoios privados para a actividade anual do Teatro. Além de dar a conhecer de forma detalhada os domínios de intervenção do TAGV, e de referir o enquadramento legislativo do Mecenato (Decreto-lei nº 74/99, de 16 de Março, e Lei 160/99, de 14 de Setembro), o Programa de Mecenato Cultural então instituído definia as várias modalidades de apoio e as respectivas contrapartidas.

Tomando como modelo protocolos semelhantes de outras instituições, o documento inicial estabelecia quatro categorias de mecenas, de acordo com montantes anuais pré-definidos: categoria A, para 30.000 euros/ano; categoria B, para 20.000 euros/ano; categoria C, para 10.000 euros/ano; categoria D, para 5.000 euros/ano. Para montantes inferiores a 5.000 euros, o apoio do patrocinador seria associado a um evento ou ciclo de programação específico, podendo tomar a forma de comparticipação nos custos de cachet de um espectáculo ou festival, num montante que poderia situar-se entre 50% e 100%, ou, no caso de produções do TAGV, essa comparticipação poderia ainda cobrir outros custos, por exemplo, de divulgação e impressão de materiais, de construção de cenografia, etc.

Para além dos benefícios fiscais previstos na lei, o investimento nas actividades do Teatro Académico de Gil Vicente oferecia três tipos de contrapartidas: publicidade institucional – possibilidade de associar o nome do patrocinador à programação e projectos do TAGV (evento singular; festival ou ciclo específico; disciplina artística; programa anual; Serviço Educativo; projectos anuais ou plurianuais; etc.) em todos os meios de divulgação; oportunidade de participar nas actividades artísticas e culturais promovidas pelo Teatro, através da oferta de convites em determinadas iniciativas; disponibilização da sala de espectáculos (incluindo recursos técnicos e humanos) para a realização de iniciativas próprias, em moldes previamente acordados.

O TAGV explicou de forma tão clara quanto possível o que tem sido a sua história, o que tem feito nos últimos anos, quem é o seu público, quais são os seus objectivos e o que se propunha fazer na temporada seguinte. Mostrou também qual a importância desse apoio adicional de entidades privadas para que a programação pudesse ser melhor e mais diversificada; para que pudesse tornar Coimbra mais cosmopolita e menos fechada sobre si mesma; para que o Serviço Educativo pudesse consolidar-se e mais crianças e jovens pudessem beneficiar da actividade do Teatro; para que mais artistas locais tivessem a possibilidade de testarem e desenvolverem as suas ideias; para que mais músicos, compositores, actores, encenadores, bailarinos e coreógrafos de qualidade artística internacional pudessem vir a Coimbra; para que pudesse haver uma programação de dança regular ou um festival de música contemporânea portuguesa, e muitas outras coisas. O TAGV explicou tão claramente quanto possível o espírito de serviço público que norteia a actividade do Teatro e de que forma o patrocínio se tornaria parte dessa missão. Mas, de facto, nada disto comoveu os seus interlocutores.

Talvez as funções sociais das práticas artísticas sejam demasiado difíceis de entender. Ou talvez o sejam em Coimbra, cidade da cultura. Talvez seja essa a sua cultura particular: uma cidade onde não se sabe para que serve a cultura. E que, não sabendo para que serve aquilo de quer ser capital, insiste em querer ser capital daquilo que não sabe para que serve. Não deixa de ser curioso que uma boa parte dos novos teatros municipais fora das zonas metropolitanas de Lisboa e do Porto, a maior parte dos quais com menos de cinco anos de funcionamento, tenham conseguido estabelecer pelo menos meia dúzia de acordos e conquistar alguns patrocinadores, seja da temporada, seja de iniciativas singulares ou circunscritas no tempo. Mesmo que a percentagem representada pelas verbas de mecenato no orçamento anual da instituição seja pouco significativa, como geralmente é, a sua presença é indicadora de algum sentido de responsabilidade social partilhada entre a realidade da economia industrial ou comercial local e a realidade da produção e programação artística e cultural local.

Entre as 50 empresas de Coimbra e região limítrofe contactadas encontram-se representados diversos ramos da actividade económica: imobiliárias, empresas de distribuição, centros comerciais, empresas do ramo automóvel, da construção, do cimento, do papel, do vidro, das novas tecnologias, da energia, da hotelaria, do turismo, do sector farmacêutico. A incapacidade de as empresas comprometerem uma parte dos seus lucros (ou do seu investimento em publicidade) num acordo de mecenato talvez reflicta a debilidade económica de uma cidade eminentemente terciária, em que a indústria tem cada vez menos expressão e o comércio é cada vez menos local e mais multinacional. Talvez reflicta o baixo crescimento económico dos últimos anos. Talvez reflicta a assunção, pelos dirigentes das referidas empresas e instituições, da irrelevância da actividade do TAGV ou da irrelevância da própria noção de mecenato. No entanto, não deixa de reflectir também aquilo que é a cultura política local dominante no que se refere ao investimento público na produção e na programação artística: para quê apoiar? Explique-me lá: para que serve isso?

No texto original de apresentação do Programa de Mecenato do TAGV, podia ler-se: «É hoje prática corrente em muitas instituições o estabelecimento de parcerias ao abrigo da referida legislação. A escassez deste tipo de parcerias na história do TAGV reflecte não apenas o alheamento dos agentes económicos da cidade e da região de Coimbra no que diz respeito às artes do espectáculo, mas também a inexistência de um Programa de Mecenato Cultural permanente no TAGV.» Depois de duas tentativas sistemáticas (em 2006-2007 e em 2007-2008) de sensibilização dos responsáveis das empresas da região de Coimbra para a importância da defesa da capacidade de programação do TAGV, aquela frase pode ser reescrita com maior rigor: «A escassez deste tipo de parcerias na história do TAGV reflecte apenas o alheamento dos agentes económicos da cidade e da região de Coimbra no que diz respeito às artes do espectáculo.»

E o texto do Programa de Mecenato do TAGV pode passar, desde já, para o gabinete de curiosidades do arquivo morto como testemunho das florescentes relações que, num curto período do início do século, se estabeleceram entre o TAGV e os agentes vivos da economia de Coimbra: «As artes do espectáculo constituem uma das formas mais vivas de relacionamento social, de aprendizagem e de comunicação. Ignorar aquilo que se faz no domínio das artes é aumentar voluntariamente o isolamento e comprometer a qualidade da formação e da educação dos indivíduos. A educação artística da sociedade constitui um dos indicadores do seu nível de desenvolvimento. É esse um dos pressupostos da legislação de Mecenato Cultural ao incentivar, através de benefícios fiscais, o financiamento de instituições de índole artística e cultural.»

«A associação de uma entidade privada à programação do TAGV permitir-lhe-á contribuir para a vida cultural e artística da cidade. Esta contribuição reflecte-se directamente na produção e na recepção artística, tornando possível a mais pessoas tomarem parte nesses actos, seja como criadores, seja como espectadores. Ao apoiar o TAGV, o patrocinador revela a sua atenção à dimensão artística da vida cívica da cidade e mostra a sua responsabilidade social, associando-se a um serviço público. Contribui deste modo para a afirmação do Teatro Académico de Gil Vicente como embaixador cultural da região no país e no estrangeiro. Ao mesmo tempo, usufrui da exposição e da publicidade decorrente dos meios de divulgação da programação do TAGV, reforçando a sua identidade pública enquanto patrocinador.» Explique-me lá: para que serve isso?