O Teatro Académico de Gil Vicente e a cidade de Coimbra (II)

Manuel Portela
(15 de Janeiro de 2008)



A primeira parte deste texto centrou-se no contributo do TAGV para a política cultural de Coimbra. Esta segunda parte é dedicada ao contributo do TAGV para a política educativa de Coimbra.

[ver III e IV partes]



A educação artística é uma componente curricular de todos os níveis e ciclos de ensino, desde o pré-escolar. Apesar de inscrito nos programas oficiais, continua a ser débil o ensino artístico em Portugal, designadamente na articulação entre as escolas públicas e as escolas vocacionais, como os conservatórios. Seja integrado, seja supletivo, o ensino artístico implica geralmente uma sobrecarga muito pouco razoável do horário de aprendizagem das crianças e um investimento adicional das famílias. Por outro lado, o ensino das artes plásticas, da música, do teatro e da dança realizado no âmbito da escola não-vocacional continua a não estar devidamente curricularizado e generalizado.

Desde logo porque é entendido como suplementar e não como nuclear na formação, com a consequente desvalorização das condições materiais e humanas necessárias à sua concretização. Por isso é oferecido, por vezes, sem equipamentos e salas adequadas; recorrendo a professores(as) sem formação adequada; admitindo um rácio aluno(a)/professor(a) que desrespeita a natureza técnica da disciplina; sem carga horária adequada; e sem plena articulação com as restantes componentes do currículo. Este entendimento, ainda predominante, da arte como suplemento tem além disso a agravante de reproduzir as divisões sociais no acesso ao conhecimento e à prática artística. Veja-se o que sucede no domínio da música: apesar da inegável melhoria da qualidade do ensino musical a nível nacional verificada nos últimos anos, este investimento serve sobretudo os grupos e classes sociais que dispõem dos recursos económicos adicionais para proporcionar essa formação às crianças e jovens.

Da percepção da importância da educação artística, resultou nas últimas décadas o desenvolvimento dos chamados Serviços Educativos como estrutura permanente associada a instituições de programação e produção cultural, como acontece com museus, bibliotecas, teatros, centros de exposições, centros de ciência e outros equipamentos de índole cultural e artística. Estes serviços têm por missão dar uma forma educativa ao acervo de que dispõem ou à programação que realizam, concebendo actividades exploratórias das suas colecções ou produzindo espectáculos que possam ser apropriados de forma pedagógica. Sublinhe-se, no entanto, que é no próprio contacto com os objectos e com as práticas artísticas que se realiza uma parte essencial da função dos serviços educativos. As actividades dirigidas, de natureza especificamente didáctica, constituem apenas uma das várias formas de realização daquela função.

A experiência da comunicação artística depende de códigos sofisticados cujo conhecimento é determinado pelo desenvolvimento cognitivo e pela familiaridade com as suas linguagens e técnicas. Admitindo que a educação artística deve fazer parte integral da educação dos indivíduos, cabe também às instituições de produção e programação artística pensar essa dimensão da sua actividade, de modo articulado, ou não, com os currículos escolares dos diversos níveis de ensino. No caso das artes cénicas, a criação de programação dirigida a faixas etárias específicas é um exemplo de intersecção entre arte e educação.

Por outro lado, cabe também às instituições de ensino a percepção de que os museus e os teatros, tal como os centros de ciência, constituem instrumentos preciosos que permitem enriquecer a experiência simbólica e sensorial que a aprendizagem constitui. A programação oferecida por um Serviço Educativo de uma instituição de produção ou de programação deve poder integrar-se, directa ou indirectamente, no currículo escolar, isto é, deve poder ser parte do plano de actividades da escola, de forma a que haja iniciativas prévias ou posteriores de exploração da visita escolar. Além disso, independentemente da dimensão curricular, a participação num espectáculo cénico na qualidade de espectador tem, por si só, um valor educativo inestimável: é dessa participação que depende o conhecimento e a capacidade de apreciar e dar sentido aos códigos da arte. Quanto mais abertos e diversificados os contextos de aprendizagem maior é a qualidade da formação oferecida. Por isso a aprendizagem fora do contexto escolar, e em particular o conhecimento das múltiplas formas assumidas pela criação artística contemporânea, deve ser valorizada.

É com esta racionalidade que o TAGV tem estado a tentar construir um Serviço Educativo. Apesar de tentativas anteriores, designadamente nas temporadas 1999-2000 e 2000-2001, só a partir de Janeiro de 2006 o TAGV se dispôs a formalizar um Serviço Educativo e uma programação educativa como elemento permanente da sua estrutura. Na temporada 2006-2007, realizou uma programação educativa anual, tendo estabelecido uma rede de interlocutores nas instituições de ensino da cidade e da região de Coimbra, com o objectivo de melhorar divulgação das suas actividades junto das escolas e a organização das deslocações dos grupos escolares ao Teatro. Além da programação específica dirigida ao público escolar e pré-escolar, as iniciativas incluíram oficinas e actividades nos domínios da leitura, da dança, da música, do teatro e do cinema. Graças à colaboração de educadores(as), professores(as), pais e mães, a actividade realizada abrangeu já um número muito significativo de crianças e jovens.

As iniciativas educativas levadas a cabo desde Setembro de 2006 representam um esforço adicional de todas as equipas do Teatro para consolidar um Serviço Educativo no TAGV, que prossegue na temporada em curso. Apesar de não se terem alcançado ainda todos os objectivos estabelecidos, foi possível instituir uma colaboração regular com instituições de todos os níveis de ensino. Merece destaque a colaboração com o Conservatório de Música de Coimbra, que permitiu a realização de um ciclo anual de concertos didácticos. Os números talvez ajudem a perceber a dimensão do trabalho realizado: entre Setembro de 2006 e Julho de 2007 realizaram-se 68 iniciativas, englobando teatro, música, dança, cinema e formação, que abrangeram mais de 11 mil crianças e jovens. Isto significa que perto de 20% do público esteve no Teatro no âmbito de actividades curriculares e extra-curriculares ligadas ao Serviço Educativo. Este público representa cerca de 100 instituições de ensino da região de Coimbra, incluindo ATLs, jardins-de-infância, escolas do ensino básico dos 1º, 2º e 3º ciclos, escolas secundárias, ensino especial e ensino superior. Também neste capítulo, a intensidade e diversidade da actividade do TAGV não tem paralelo em temporadas anteriores, proporcionando a muitas crianças e jovens não só a primeira vinda ao TAGV, mas para uma parte delas uma participação cada vez mais regular.

Refira-se que o TAGV tem procurado proporcionar um acesso social tão alargado quanto possível a esta programação. Algumas iniciativas têm entrada gratuita, e a maior parte das restantes um custo que não vai além de 3 euros por bilhete para os grupos escolares. O TAGV criou também o bilhete-família na programação classificada como educativa. Com o objectivo de promover a formação do público, passou a incluir como parte da programação educativa todos os concertos de música erudita, os espectáculos de dança contemporânea e a maior parte dos espectáculos de teatro. O orçamento do TAGV torna extremamente difícil sustentar esta programação com a regularidade e com a continuidade necessárias para poder contribuir efectivamente para a educação artística das crianças e jovens, em articulação com a sua formação escolar. Para que este esforço resulte, tem de ser um esforço sustentado a longo prazo e deve tornar-se num elemento estrutural no funcionamento da própria instituição.

No entanto, nem sempre as instituições de ensino conseguem reunir as condições mínimas necessárias para concretizarem as deslocações ao Teatro: para certas famílias, mesmo um euro pelo preço de um bilhete pode ser significativo; por outro lado, a nova legislação relativa à obrigatoriedade de uso de cinto de segurança em autocarros, combinada com a carência de verbas das instituições autárquicas, tornou mais difícil a algumas instituições escolares disporem dos meios colectivos de transporte, cujos custos não podem suportar. Quer dizer que nem sempre a vontade de educadores(as) e professores(as) de integrarem a programação do TAGV nas suas próprias actividades se pode concretizar: mesmo depois de obtidas as autorizações dos encarregados de educação e de planeada uma saída no plano de actividades da escola, falta o meio de transporte que tornaria a deslocação possível. E este é apenas um dos desincentivos, ao qual é necessário acrescentar a burocratização excessiva das saídas escolares, que tem feito decrescer o número de visitas de estudo em muitas escolas nos últimos anos.

Deste projecto educativo do TAGV foi dado conhecimento à Direcção Regional de Educação do Centro (DREC), sublinhando-se a escala e a dimensão do trabalho realizado no último ano e propondo-se modalidades de colaboração entre o TAGV e a DREC, que poderiam eventualmente ser objecto de um protocolo. Este protocolo teria como objectivo apoiar programação educativa sempre que a iniciativa fosse especificamente dirigida ao público escolar e pré-escolar da Região Centro. Infelizmente esta proposta não obteve sequer uma resposta. Se todos os responsáveis escolares, e em particular aqueles que têm responsabilidades na determinação da política educativa local e regional, estivessem atentos seria certamente mais fácil ao TAGV instituir esta dimensão educativa da sua programação e contribuir para mudar a percepção colectiva sobre o valor educativo da música, da dança, do teatro ou do cinema. Mas esta insensibilidade reflecte afinal a constatação de que parte o projecto de criar um Serviço Educativo no TAGV: não existe uma política de educação artística digna dessa designação.