O saneamento básico da cultura

[texto publicado em Dezembro de 2005]



A actividade cultural em Coimbra está a ser alvo de um ataque cerrado por parte da instituição que mais a devia acarinhar – a Câmara Municipal. Os sinais que ao longo dos últimos tempos se vinham avolumando tornaram-se agora tão evidentes que já não há dúvidas de que estamos perante uma verdadeira tentativa de saneamento da criação e programação artística na cidade.
No passado dia 15 de Dezembro, foi aprovado em reunião do executivo autárquico o orçamento para 2006 que prevê uma redução de cerca de 60% (!) das verbas destinadas à “afirmação da cultura”. Menos de uma semana depois, são publicadas num jornal da cidade declarações do vereador responsável pelo pelouro gravemente atentatórias da dignidade dos agentes culturais de Coimbra. Em relação a dois deles – o Teatro Académico de Gil Vicente e A Escola da Noite –, considera mesmo que os protocolos que os unem à autarquia são “lesivos” do interesse do município.
Recusamo-nos a pactuar, com o nosso silêncio, com a humilhação destes e de todos os agentes que têm prestado um serviço público na cidade de Coimbra. Os profissionais da cultura não a merecem, mas, acima de tudo, a cidade não merece ser exposta ao ridículo desta forma.
Exige-se da Câmara Municipal, e do seu Presidente, que esteja à altura das responsabilidades e das legítimas aspirações de uma cidade que pode e deve afirmar-se regional, nacional e internacionalmente, pela cultura e pelo conhecimento.
A cultura é um bem de primeira necessidade e compete ao Estado (está previsto na Constituição, na lei e nas competências das autarquias) assegurar que esse serviço público é prestado; em segundo lugar, as actividades culturais não são uma fonte de despesa mas um factor de desenvolvimento, como desde há muito está experimentado e provado.
Não podemos também aceitar o argumento da cultura popular contra a alta-cultura, que demagogicamente tem vindo a ser alimentado. De tão velha e gasta, esta discussão já não pode impressionar ninguém. Ter que justificar a um presidente de câmara a importância de, por exemplo, assegurar o funcionamento de uma sala de espectáculos, garantir a subsistência de uma companhia de teatro profissional ou financiar um centro de exposições é, convenhamos, um absurdo.
O desenvolvimento cultural da cidade de Coimbra só poderá ser conseguido através da consolidação das estruturas de criação e produção existentes, da criação de condições para o surgimento e implantação de novos agentes, de uma aposta concertada na formação de novos profissionais e de um trabalho permanente na sensibilização das novas gerações para as artes.
O profissionalismo, neste contexto, não é um luxo. É uma condição indispensável para que o trabalho se faça de uma forma consistente, com regularidade, com qualidade, com responsabilidade. Cidades portuguesas bem mais pequenas do que Coimbra já o perceberam há muito e disso colheram recompensa.
O investimento público, nesta área, não é um favor. É uma obrigação do Estado, como única forma de assegurar o acesso dos cidadãos à diversidade da criação artística e de impedir a homogeneização e o empobrecimento da oferta, decorrentes da sua sujeição à lógica e às regras do mercado.
Estamos no início de um novo mandato autárquico. A arrogância, a falta de visão estratégica e o provincianismo demonstrados pela Câmara Municipal de Coimbra nesta matéria constituem um péssimo prenúncio do que está para vir.
Exige-se, por isso mesmo, uma inversão de rumo. Que terá que reflectir-se em investimentos financeiros mas que começa, tão simplesmente, por algo que não custa dinheiro: o respeito pelo trabalho dos agentes culturais, pela cidade e por quem nela vive.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2005


Abílio Hernandez, Adília Alarcão, Adriana Bebiano, Alexandra Teles Monteiro, Alexandre Ramirez, Amílcar Cardoso, Ana Cristina Macário Lopes, Ana Pires, André Ferrão, António Marinho Pinto, António Olaio, António Sousa Ribeiro, António Tavares Lopes, Boaventura de Sousa Santos, Carlos Antunes, Carlos Fiolhais, Carlos Fortuna, Carlos Reis, Catarina Martins, Desirée Pedro, Elísio Estanque, Eneida Nunes, Ernesto Jorge Costa, Fátima Carvalho, Gonçalo Luciano, Henrique Madeira, Ilídio Manuel Barbosa Pereira, Isabel Maria Luciano, Joana Castanho Sobral, Joana Monteiro, João Bicker, João Maria André, João Mendes Ribeiro, João Paulo Dias, João Paulo Janicas, Joaquim Gomes Canotilho, José António Bandeirinha, José Augusto Ferreira da Silva, José Barata, José Manuel Pureza, José Reis, José Vieira Lourenço, Luís Januário, Luís Reis Torgal, Manuel Rocha, Manuela Cruzeiro, Margarida Mendes Silva, Maria de Lurdes Cravo, Maria Irene Ramalho, Maria Manuel Leitão Marques, Marisa Matias, Natércia Coimbra, Pedro Hespanha, Rita Marquito, Rui Bebiano, Rui Pena Reis, Susana Paiva, Teresa Jorge, Teresa Santos, Vasco Pinto, Vital Moreira.