O Teatro Académico de Gil Vicente e a cidade de Coimbra (III)

Manuel Portela
(15 de Janeiro de 2008)



A primeira parte deste texto referiu o contributo do TAGV para a política cultural de Coimbra. A segunda parte foi dedicada ao contributo do TAGV para a política educativa de Coimbra. Esta terceira parte é dedicada ao contributo do TAGV para a política artística de Coimbra.

[ver IV parte]



Enquanto instituição de programação, o TAGV não pode deixar de reiterar, a cada nova decisão, esta pergunta: qual a relação entre programação e criação? A resposta que tem dado nos últimos dois anos é esta: na medida em que a montante da programação está o trabalho de criação, uma parte dos meios de produção (em equipamento, recursos humanos, capacidade de realização e de comunicação) deve ser dirigida para o apoio desinteressado à criação, oferecendo aos criadores as condições para experimentarem e concretizarem a sua visão artística singular. Não sendo o único domínio em que essa resposta é observável, a programação teatral tem tentado desempenhar de forma mais explícita e articulada esse papel de promotor da criação.

São conhecidas as dificuldades dos grupos e associações de Coimbra para o exercício continuado do trabalho teatral, designadamente no acesso a espaços e equipamento que proporcionem as condições adequadas de preparação e apresentação das suas encenações, ou que permitam dar maior alcance público ao trabalho de criação desenvolvido. Interrogar o mundo através da arte significa também ter a oportunidade de experimentar e criar sem os constrangimentos das leis do mercado. Como interface da Universidade de Coimbra no domínio das artes do espectáculo, o TAGV deve programar com pleno sentido dessa dimensão da sua função institucional. O crescimento intelectual e artístico, do público e dos criadores, depende do exercício constante. A colaboração estabelecida entre o TAGV e os artistas deve permitir cimentar as relações entre produtores e receptores na cidade de Coimbra. A possibilidade de aumentar a qualidade dramatúrgica, cenográfica e de interpretação depende de uma actividade continuada e de um processo contínuo de crítica e de recepção pública. Sem esta actividade constante dificilmente se criam as condições de produção e recepção para consolidação das práticas, para invenção de formas, para a qualidade da escrita e do espectáculo, e, em última análise, para produzir formas artísticas capazes de revelar o que somos e o mundo em que vivemos.

A política em curso de apoio à criação teatral local teve início a 27 de Março de 2006, com a assinatura de um protocolo de colaboração com as companhias e cursos de teatro de Coimbra. Esta política de programação procura oferecer condições para a experimentação dramatúrgica, fortalecendo o espaço público das artes cénicas. No âmbito deste projecto, que ganhou entretanto a designação genérica «Estreias-TAGV», foram apresentadas 18 produções originais (entre Março de 2006 e Novembro de 2007), num total de 51 sessões de espectáculo, para cerca de 5500 espectadores. Além do apoio concedido através de meios técnicos e humanos, o TAGV recomenda um conjunto seleccionado de novas produções para circulação na rede de teatros municipais. Esta recomendação é feita com o duplo objectivo de defender e valorizar o trabalho dos criadores teatrais e de fomentar a cooperação entre instituições de programação, sugerindo para itinerância produções que acolheu em estreia. O número de estreias consecutivas apresentadas testemunha de forma eloquente o dinamismo da criação teatral em Coimbra.

O apoio do TAGV tem revestido as seguintes formas: apoio da equipa técnica na montagem, operação e, se for caso disso, na concepção das luzes e do som; apoio na montagem da cenografia; apoio dos serviços artísticos e de produção na divulgação, através dos seus canais e meios próprios; apoio, se for caso disso, na concepção e execução dos materiais gráficos de divulgação; apoio, se for caso disso, no registo áudio, vídeo ou fotográfico da obra; cedência de espaço de ensaio em horas compatíveis com as restantes actividades e programação do Teatro; cedência de um certo número de dias e noites do auditório para montagem, ensaio geral e espectáculos de apresentação (1 a 2 dias de ensaio, seguidos de 1 a 3 dias de apresentação, conforme a natureza do espectáculo); cedência das receitas de bilheteira em condições vantajosas para os produtores externos. Não dispondo de orçamento para financiar projectos – seja na aquisição de material, seja no pagamento de honorários aos artistas, seja através
de uma residência artística prolongada, isto é, na oferta do conjunto de condições que configuram a encomenda de uma obra –, o TAGV dispõe ainda assim de uma capacidade de produção que pode ser mobilizada, dentro de certos limites, no apoio ao processo de criação teatral. Ao mesmo tempo, faz reflectir na sua programação a dinâmica local de criação.

Integrados no programa «Estreias-TAGV», foram apresentados entre Março de 2006 e Novembro de 2007 os seguintes espectáculos: «A Água Dorme de Noite», pelo GEFAC (a 10 de Março, e de novo a 2 e 3 de Maio de 2006); «Gal: Farpas para um País sem Lobbies», pela BUH! (a 17 e 18 de Abril de 2006); «Vai e Vem», de Samuel Beckett, com encenação colectiva (a 19 de Maio de 2006; produção TAGV); «À Espera, Adeus, Eu Fico», escrito e encenado por Mickaël de Oliveira, com partitura original de Francisco Pessanha (a 12 e 13 de Junho de 2006); «Senhora D», de Hilda Hilst, pelo Teatro do Morcego, com encenação de Carlos Martins e Ana Varela (a 28 e 29 de Junho, e de novo a 12 de Outubro de 2006); «O Amor de Longe», de Amin Maalouf, com encenação de Margarida Miranda (a 12 e 13 de Julho de 2006); «LED – viagem ao interior num computador», pela Marionet, com texto e encenação de Mário Montenegro (a 25 e 26 de Setembro de 2006); «As Crianças» e «Os que rastejam», de Russell Edson, pela Camaleão, com tradução e encenação de José Geraldo (a 28, 29 e 30 de Setembro de 2006; projecto apoiado pelo Instituto das Artes); «Physicomic», pela Encerrado para Obras, com dramaturgia e encenação de David Cruz (a 30 e 31 de Outubro de 2006); «Bengala dos Cegos: O Descobrimento de Pedro Nunes», pela Marionet, com texto e encenação de Mário Montenegro (a 18, 20 e 21 de Novembro de 2006; projecto apoiado pelo Instituto das Artes); «Hamlets», pelo TEUC, com encenação de Nicolau Antunes (a 8 e 9 de Dezembro de 2006, e de novo a 3 e 4 de Janeiro de 2007); «Ópera Bichus», de Jorge Vaz Nande, com encenação de Hélder Wasterlain (a 11 e 12 de Abril de 2007); «Hoje Fiz Amor pela Terceira Vez ou Beberes é a Prova que Nada é Bem Finito», escrito e encenado por Mickaël de Oliveira (Prémio Nova Dramaturgia Maria Matos 2006), com partitura original de Francisco Pessanha (a 2 e 3 de Maio de 2006); «Clones e Clowns», pela Encerrado para Obras, com texto e encenação de David Cruz e Estela Lopes (a 29 e 30 de Maio de 2007); «O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão», de Eric-Emmanuel Schmitt, com encenação de João Maria André (a 5, 6 e 7 de Julho de 2007, co-produção TAGV; projecto apoiado pelo Instituto das Artes); «Parede de Segredos», baseado na obra Folhas Caídas de Almeida Garrett, encenado por Berta Teixeira e Gonçalo Antunes de Azevedo (a 23 e 24 de Outubro de 2007); «Uma Ilha na Lua» (para Orquestra, Baixo, Soprano e Narradores), de William Blake, pela Camaleão e pela Orquestra Clássica do Centro, com direcção artística de José Geraldo, música de Joaquim Pavão e direcção de orquestra de Carlos Marques (a 8, 9 e 10 de Novembro de 2007, co-produção TAGV); e «As Portas da Percepção», de William Blake, pela Marionet, com direcção artística de Mário Montenegro (a 23 e 24 de Novembro de 2007, co-produção TAGV; projecto apoiado pela Direcção-Geral das Artes).

De cada um destes 18 espectáculos foram apresentadas entre 2 e 5 sessões, incluindo um número significativo de sessões para público escolar. Este conjunto de espectáculos representa o maior conjunto consecutivo de estreias (fora de festivais) realizado pelo TAGV na sua história recente. Os termos de apoio do TAGV, instituídos com o protocolo de 27 de Março de 2006, foram pontualmente alargados a outros projectos locais – universitários e extra-universitários –, com características e modo de produção semelhantes. Outros acolhimentos, como «Tchékhov e a Arte Menor», pel’ A Escola da Noite, com encenação de António Augusto Barros, e «O Fazedor de Teatro», de Thomas Bernhard, com encenação de Pedro Malacas (co-produção TEUC e Camaleão), foram realizados dentro dos mesmos princípios de programação. Alternar o acolhimento de companhias consagradas com projectos emergentes, oferecendo-lhes os meios de produção do TAGV, é, na conjuntura actual, uma das possibilidades de conceber uma política de programação enquanto política artística.

Esta política artística do TAGV não se tem limitado sequer ao teatro, já que um número muito significativo de artistas locais de outros domínios (na música, nas artes plásticas, na performance, na fotografia, nas artes gráficas, na cenografia, na arquitectura, na literatura, no cinema, etc.) tem podido mostrar a sua obra e partilhar o TAGV como espaço público de conhecimento e de comunicação sobre práticas artísticas contemporâneas, mantendo-o vivo enquanto tal. Ao conceber produção própria e programação como instrumentos de incentivo desinteressado à criação, o TAGV reafirma uma identidade pública específica e, ao mesmo tempo, desempenha melhor a sua missão universitária. Criação e experimentação artística podem agregar-se como parte dessa identidade e dessa missão. Se for possível este investimento estratégico na instituição, essa identidade poderá reforçar-se ao aliar a uma política artística pública, com significativo impacto local, o seu papel universitário de instrumento de conhecimento e de investigação das artes na Universidade de Coimbra. É essa possibilidade de um contributo do TAGV para as artes em Coimbra que a programação tem tornado mais explícita na sua articulação e mais sistemática na sua concretização.