O Teatro Académico de Gil Vicente e a cidade de Coimbra (I)

Manuel Portela
(15 de Janeiro de 2008)



Este texto constitui a primeira parte de um conjunto de quatro. O primeiro é dedicado ao contributo do TAGV para a política cultural de Coimbra. Os restantes são dedicados, respectivamente, ao contributo do TAGV para a política educativa de Coimbra, ao contributo do TAGV para a política artística de Coimbra e, por último, às relações do TAGV com os agentes económicos de Coimbra.



Como é sabido, o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) é um estabelecimento da Universidade de Coimbra, que funciona na dependência directa do Reitor e desenvolve as suas actividades no domínio da arte e da cultura, ao serviço da universidade, da cidade de Coimbra e da sua região. É nestes termos que é definido no seu regulamento. Desde a sua inauguração em 1961, o TAGV tem sido a principal instituição de Coimbra no domínio das artes do espectáculo, funcionando como interface privilegiado entre a Universidade de Coimbra e a comunidade local. À missão específica de apoio às actividades artísticas no âmbito da universidade somam-se as demais actividades de produção e programação dirigidas à cidade de Coimbra. Desta função histórica resultou uma identidade sui generis, que combina a função estritamente universitária com uma função pública em sentido lato. De tal forma que, no imaginário colectivo, o TAGV tende a ser representado como o Teatro da cidade – uma parte do público desconhece até o vínculo à Universidade.

Daquela situação resultou um efeito muito perverso, especialmente notório na conjuntura de expansão da produção artística e cultural que ocorreu a nível nacional desde o início dos anos 90: uma desresponsabilização dos sucessivos executivos municipais no que diz respeito a uma política cultural consistente no domínio das artes do espectáculo. Esta desresponsabilização manifestou-se, ao longo dos anos, no baixo investimento em infra-estruturas e na ausência de um projecto integrado de promoção da produção e programação artística a médio e a longo prazo. Com efeito, uma parte do papel municipal, neste capítulo, tem sido desempenhado pelo TAGV.

Essa dimensão pública extra-mural do TAGV acentuou-se a partir de Dezembro de 1994, isto é, desde as obras de renovação de 1993-94. A intensidade, diversidade e regularidade da programação – no referido contexto de incremento nacional da actividade artística – permitiram desde então ao TAGV reforçar aquela identidade institucional sui generis. Todas as disciplinas cénicas (teatro, cinema, música, dança) e um grande número de artistas das mais diversas origens geográficas e culturais encontram-se representados na programação dos últimos 13 anos. A programação tem-se afirmado como multidisciplinar e multicultural. Todavia, esta contribuição do TAGV para a vida cultural e artística da cidade nunca foi reconhecida na devida proporção pelas autoridades locais. O único subsídio regular concedido, entre 1999 e 2005, representava apenas cerca de 10% do orçamento anual. Este pequeno apoio deixou entretanto de existir (a partir de 2006 inclusive), o que significa que os responsáveis da Câmara Municipal de Coimbra decidiram ignorar ainda mais ostensivamente a contribuição do TAGV para a política cultural local.

Para que a relação actual do TAGV com a cidade de Coimbra fique bem clara, vale a pena enumerar brevemente algumas das actividades realizadas. Apesar das condições orçamentais adversas, o TAGV lançou nos últimos dois anos um conjunto significativo de projectos com o objectivo de se aproximar gradualmente de instituições congéneres de referência, a nível nacional e internacional. Esta tentativa de renovação manifesta-se quer no desenvolvimento de novas práticas de organização, quer na construção de uma programação multidisciplinar atenta às práticas e linguagens artísticas contemporâneas. O TAGV instituiu ainda um programa sistemático de apoio à criação teatral local, no âmbito do qual foram estreadas 18 novas produções desde Março de 2006 – o maior conjunto de estreias consecutivas (fora de festivais) na sua história recente. Estas estreias resultaram de parcerias estabelecidas com mais de uma dezena de associações de criação artística local. O TAGV reforçou igualmente a educação artística, através de uma programação educativa regular, na qual tomaram parte, só na última temporada, cerca de 11 mil crianças e jovens de uma centena de instituições de todos os níveis de ensino – no que constitui também a maior e mais sustentada tentativa na sua história recente de instituir uma programação educativa.

Além disso, aumentou significativamente o número de iniciativas próprias, com mais de uma dezena de ciclos originais de programação em 2006-2007 e 2007-2008: nos domínios do livro e da leitura («escrileituras», «máquinas de escrever», «escaparate», «Os Livros Ardem Mal»); do teatro («estreias-TAGV»), do cinema («Segundas TAGV», «Doc TAGV», etc.); da música («A Cor do Som: Recitais e Concertos TAGV», «Senses: Música Electrónica e Multimédia»); e das exposições («Teatro a Arquitectura», «Teatro e Cenografia»). Organizou ou co-organizou diversos debates de relevância pública local e nacional («Política Cultural», «Cooperação Económica Ásia-Pacífico: Implicações para as Nações do Sudeste Asiático», «Vamos Falar sobre Habitação [em Coimbra]?», etc.). A tudo isto acrescem os festivais anuais, como o «Coimbra em Blues» e, em acolhimento, os «Caminhos do Cinema Português», a «Festa do Cinema Francês» e os «Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra». A estatística da temporada 2006-2007 registou 405 realizações (das quais 288 utilizações do auditório), o que torna o TAGV numa das instituições mais produtivas entre as suas congéneres a nível nacional. Este conjunto de iniciativas representa, além do mais, a primeira tentativa de estruturar toda a programação do TAGV à escala da temporada.

O projecto gradualmente construído ao longo de 2006 e 2007 permitiu explicitar como princípios orientadores das decisões de programação e produção os seguintes: garantir a qualidade e coerência da programação de teatro, cinema, música, dança e transdisciplinar; em cada disciplina, acolher produções de repertório clássico e criações contemporâneas; representar diversas práticas, linguagens e géneros artísticos; fortalecer a produção própria, designadamente através de festivais, ciclos e co-produções; apoiar a experimentação artística em todas as áreas; programar com objectivos educativos e pedagógicos, criando condições para um amplo conhecimento das práticas artísticas, na sua história e na sua forma actual; formar públicos, dentro e fora da universidade, promovendo a sua participação no espaço público constituído pelas artes do espectáculo; alargar a colaboração com instituições congéneres e a programação em rede, à escala regional, nacional e internacional; promover debates, lançamentos e exposições que possam constituir um espaço público de aprendizagem e comunicação sobre práticas artísticas, científicas e culturais contemporâneas.

Uma forma ainda mais sucinta de demonstrar a proporção do contributo actual do TAGV para a actividade cultural da cidade de Coimbra consiste na observação da Agenda «Coimbra Acontece» produzida pela Câmara Municipal de Coimbra. Repare-se na agenda referente aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2008: das 4 páginas de enumeração de iniciativas dedicadas à música, 2 páginas e meia são realizações do TAGV (com 10 iniciativas ao todo); das 4 páginas da agenda dedicadas a teatro e cinema, 3 páginas são realizações do TAGV (com 10 iniciativas ao todo, entre as quais 4 peças de teatro). Num e noutro caso, estão incluídas iniciativas de educação para a música e para o teatro, através de programação especificamente dirigida às crianças e jovens. A dimensão pública municipal da programação do TAGV torna-se assim incontestavelmente perceptível: retirem-se aquelas 5 páginas e meia à agenda, e percebe-se melhor o que Coimbra perderia. Ao mesmo tempo pergunte-se: qual a percentagem de comparticipação do orçamento municipal na programação do Teatro? A resposta também é conhecida: zero por cento. Os dirigentes municipais, que sempre admitiram com relutância o seu dever público de apoiar o serviço público prestado pelo TAGV, limitam-se agora a ignorá-lo de forma simplesmente ostensiva.

Observado com atenção, o projecto actual do TAGV contém, à sua escala, uma política cultural não apenas da universidade mas da cidade de Coimbra. Esta capacidade de observação não está, no entanto, ao alcance dos nossos dirigentes municipais. Esquecem-se de que uma das suas funções mais importantes é apoiar a capacidade de iniciativa e mobilizar os recursos colectivos, de forma livre e desinteressada, para os pontos onde há ideias novas e capacidade de realização. Esquecem-se também de que os agentes locais que demonstraram, ao longo dos anos, capacidade de conceber e desenvolver um projecto artístico consistente – sejam associações de criação, instituições de programação ou de outra índole – devem ter asseguradas as condições necessárias para não regressarem ao limiar da sobrevivência e poderem continuar de forma incremental a construir sobre a experiência anterior. Só assim é possível consolidar as práticas artísticas como parte de um espaço público aberto ao conhecimento do real e à reflexão sobre os modos de auto-organização da comunidade. O conceito de política cultural – por certo inferível a partir da racionalidade dos actos de programação em curso no TAGV – é-lhes estranho enquanto tal: não sabendo pensar esse pensamento, não sabem também reconhecê-lo.