A lição de Coimbra

José Reis
(Público, 1 de Fevereiro de 2006)



Há um debate, em Coimbra, sobre cultura e cidadania. Os factos que o rodeiam lembram-se rapidamente. Comecemos pelo lado negro da história: o executivo municipal resolveu proceder a um corte de 60 por cento no orçamento autárquico para a cultura e, como se isso não bastasse, um obscuro vereador considerou alguns dos apoios mais significativos até agora concedidos “lesivos” para a câmara (apesar de terem um peso percentual ínfimo). Num gesto revelador da sua grandeza, apresentou tais gastos como se fossem dinheiro seu e achou – palavras de rara elegância – que não podia desperdiçar assim uma “pipa de massa” quando há tantos ranchos folclóricos a necessitar dele. O presidente da câmara levou o orçamento à assembleia municipal, que o aprovou com a oposição de dois partidos e a irritante contemporização de outro, que se tornou parceiro menor da maioria de direita. Mas o presidente achou que devia juntar à sua condição de responsável material e político por tais decisões algumas tiradas de mau gosto, passando também a agente subjectivamente envolvido de uma política autárquica cada vez mais preocupante. Desconsiderou os sessenta subscritores de um manifesto público que se insurgiu contra estas descisões e achou que a opinião fundada de concidadãos seus sobre uma questão pública era um acto trivial de “amiguismo”.
Ora não é, embora seja, de facto, um acto público de amizade por relevantes instituições culturais da cidade. E, se é certo que elas são protagonizadas por pessoas de mérito que justificam amizade e reconhecimento, em vez de desconsideração, nem por isso a questão é pessoal. A posição daqueles cidadãos foi, isso sim, uma expressão do modo como entenderam uma cidade e a sua vida pública. Esse é o outro lado da história e é esse que queremos sublinhar neste texto, fazendo dos factos narrados um simples intróito.
Que instituições são essas que a câmara desmerece? É a Escola da Noite – uma companhia de teatro profissional residente que há 14 anos produz com qualidade em Coimbra. É o Centro de Artes Visuais, uma instituição cosmopolita que é um produto do maior acontecimento coimbrão durante mais de 20 anos, os Encontros de Fotografia. É o Teatro Académico de Gil Vicente, “o” lugar dos acontecimentos culturais de Coimbra, quer os da academia culta, quer os da cidade exigente, e onde convergem iniciativas como o Festival de Blues, o Festival de Jazz e, pasme-se!, Festival José Afonso, que agora a câmara desapoia. Para além dos méritos de cada uma, estas três entidades têm uma coisa em comum: viabilizam uma vida cultural enraizada na cidade, aqui produzida, endogenamente criadora, produtora de espaço público, de cidadania, de vida quotidiana enriquecedora. Estas instituições são, portanto, elas próprias, cidade. Acontece que a Câmara de Coimbra não sabe que é assim que se faz uma cidade de qualidade, não sabe que quem dispõe destes recursos deve ser exigente com eles mas não os pode submeter nem desconsiderar. É por estas razões que o episódio em causa não é uma simples querela orçamental – é uma questão essencial de discussão da cidade que queremos. Por isso, a afronta orçamental é, antes de tudo, um acto de desfazer a cidade.
Por que é que a CMC não sabe isto, não entende isto? Porque, com as mesmas mãos com que toma estas decisões, torna outras de ainda mais profundo significado: trivializa a cidade, põe-lhe betão em cima, privatiza de forma rude e grotesca o espaço público, faz dela uma cidade como as outras, como as que não têm qualidade nem agentes culturais de relevo. Os exemplos não faltam: numa zona nobre e de qualidade urbana da cidade – S. José e Solum – privatizou (em sentido literal) ruas e praças para fazer um shopping e viabilizar um estádio. Outra zona nobre do centro – o espaço de Santa Clara fronteiro à colina que é a própria imagem da cidade e a dois passos da portagem – foi alarvemente funcionalizada para criar acessibilidades pesadas a outro shopping que é uma violenta agressão na paisagem da cidade. [Pequena nota: não temos nada contra estes centros comerciais; mas que sirvam para fazer cidade nova e funcional, não para canibalizarem o espaço público, destruindo-o!]
O problema das decisões da câmara e dos que viabilizaram o orçamento é este. Coimbra sofreu, é verdade, uma gritante paralisia no anterior ciclo autárquico. Mas está hoje a viver um período dramático: um urbanismo agressivo, uma incultura gestionária, uma política sem sentido do que é uma cidade de qualidade e que agride os cidadãos que querem dar vitalidade ao espaço público (uma dúzia de artigos destes não chegariam para falar de S. Francisco, do Pátio da Inquisição, da Sofia, da Alta, das relações com o futebol, etc.).
Um observador exterior (não há cidades vivas sem reconhecimento externo) e atento como poucos – Eduardo Prado Coelho – já salientou bem nas páginas do Público aspectos convergentes com os que aqui defendemos. Há dias, dizia que “Coimbra não é uma Lição” e tornou-se mais uma vez cidadão de Coimbra. Devemos uma retribuição genuína a E.P.C. Há uma lição de Coimbra: a de que aqui se está a discutir por onde é que passa e por onde não passa a criação permanente de uma cidade, quais são as medidas que exigem que nos revoltemos contra elas, que caminhos é que nos desqualificaram. São estes, julgamos, aspectos essenciais da discussão da vida urbana.

José Reis, professor universitário
[Participaram na elaboração deste texto e subscrevem-no: Carlos Reis, Ana Pires, José Manuel Pureza, Abílio Hernandez, José António Bandeirinha, João Maria André e Marisa Matias]