Elísio Estanque, José António Bandeirinha, José Manuel Pureza, Luis Januário e Marisa Matias
(Diário de Coimbra, 18 de Janeiro de 2006)
Em recentes declarações públicas, o vereador da cultura de Coimbra considerou “lesivos do interesse do município” os protocolos estabelecidos entre a autarquia e os principais agentes culturais da cidade, a propósito dos quais se queixou de despender “uma pipa de massa”. Simultaneamente, foi aprovado o orçamento da Câmara para 2006, que prevê cortes muito substanciais para a área da cultura. Neste contexto, 60 cidadãos de Coimbra (entre os quais nos incluímos) expressaram a sua indignação, num documento intitulado “O saneamento básico da cultura”, documento em que definem a cultura como um “bem de primeira necessidade” e como “factor de desenvolvimento” das cidades e das regiões.
A esta tomada de posição respondeu Carlos Encarnação (CE), presidente da Câmara, com a acusação de “amiguismo”, sugerindo ainda que pressionássemos o Ministério da Cultura. As palavras têm peso e significado. Ao dizer “amiguismo” e não “amizade”, CE não só desvaloriza a participação cívica deste conjunto de cidadãos como entra no terreno do insulto e da insinuação. Ao reendereçar o nosso protesto a outros destinatários, pensa poder desculpar-se destas responsabilidades específicas que lhe cabem na “desgovernação” cultural da cidade.
É claro o significado que CE pretende dar à palavra “amiguismo”: ele quer insinuar que aquilo que nos move é a defesa de pessoas nossas amigas e que tudo se resume a questões pessoais. E é nessa mesma perspectiva que CE se situa ao convocar-nos para metermos umas “cunhas” aos “nossos amigos” do governo para que desbloqueiem assuntos pendentes na vida da cidade. Que CE tenha esta concepção da política democrática, é com ele – o “apelo à cunha” só define quem o faz. Que o Presidente da Câmara ache que é assim que se resolvem os assuntos importantes da cidade, é ainda mais grave. E mais grave ainda é que o responsável máximo pela política cultural do município finja ignorar que o que está em causa nas gravosas declarações do seu vereador não são pessoas, mas instituições. Assim demonstra CE, uma vez mais, a total falta de respeito, quer pelos signatários do documento, quer pelos agentes culturais da cidade, sobre o trabalho dos quais, aliás, nunca se lhe ouviu uma palavra de apreciação objectiva e muito menos de apreço. Não é essa a nossa visão e é também em nome dessa diferença que nos manifestamos indignados.
Uma coisa é certa: CE não se demarcou um milímetro que fosse das declarações do vereador da cultura. Para o Presidente da Câmara de Coimbra, portanto, garantir o funcionamento de um equipamento municipal é desbaratar uma pipa de massa. Está tudo claro. Encarnação tenta assim escamotear as suas próprias responsabilidades, como se uma redução de 60% (!!) nas dotações do orçamento municipal para a cultura não resultasse de uma opção política clara, pela qual só o seu Executivo pode ser responsabilizado. Assim, CE não só subscreve as declarações infelizes do seu vereador (e, pelos vistos, porta-voz), como, o que é igualmente grave, não esboça sequer qualquer ideia positiva, em termos alternativos, ao projecto protagonizado por estes e muitos outros agentes culturais da cidade.
Em Coimbra, nos dias que correm, ainda é necessário justificar a necessidade do investimento público na cultura, ainda se discute a pertinência do profissionalismo nas artes, ainda se põe em causa a programação autónoma de uma sala de espectáculos como o Teatro Académico de Gil Vicente, a subsistência de uma companhia de teatro profissional como A Escola da Noite ou a subsistência de uma entidade como o Centro de Artes Visuais, para só falar de alguns que, nascidos e consolidados nesta cidade, alcançaram uma inquestionável relevância nacional.
Não se trata, e isso é o mais importante, de uma questão exclusivamente local. É que Coimbra tem, nesta matéria, especiais responsabilidades. Numa época em que as cidades procuram afirmar as suas marcas diferenciadoras, a de Coimbra só pode ser esta – a da cultura e do conhecimento, numa perspectiva que potencie o seu reconhecido historial mas que consiga, autónoma e desassombradamente, construir a contemporaneidade. E é justamente contra esse objectivo estratégico que a política cultural do município se manifesta. O projecto de quem considera gravosos os apoios públicos a entidades profissionais com programação própria é ter uma cidade com eventos culturais completamente indiferenciados do que se oferece em qualquer outro sítio. Porventura com pompa, quem sabe até se com imagens televisivas, mas sem qualquer enraizamento na formação de públicos e sem qualquer ambição de diferenciação.
Quando se deveria apostar na consolidação do que existe e em criar condições para o surgimento de novos projectos, assiste-se, pelo contrário, à humilhação de um significativo conjunto de agentes e iniciativas culturais que, prestando um serviço público, têm contribuído para valorizar Coimbra.O nosso acto não é um acto de amiguismo. É um acto de cidadania. E a cidadania não é incompatível nem com o direito à indignação nem com o exercício da solidariedade. É essa solidariedade que nos merecem todos os que foram, com as duplas declarações em causa, injustamente ofendidos. Independentemente de merecerem também a nossa amizade. Que, quando honrada, honra também a política. E quando desprestigiada desprestigia igualmente a política que a si própria se desonra.