A subsídio-dependência

A Escola da Noite
(A Cabra, 17 de Janeiro de 2006)



Os criadores artísticos e os seus públicos confrontam-se ciclicamente com o discurso da subsidio-dependência. Um discurso alimentado, no fundo, pela ideia de que a criação artística não deve ser financiada pelo Estado, até porque, dirão os mais cínicos, ela deve ser “livre” e “independente”.

É aqui que vale a pena situar o debate e clarificar alguns conceitos. Insistir na tese dos “subsídios” para a criação artística é afirmar que esta não é um serviço de interesse público. Caso contrário, assumir-se-ia que os apoios atribuídos pelo Estado constituem financiamento e investimento públicos, previstos, de resto, na própria Constituição.

Mas em que consiste este serviço público? Por que há-de o Estado financiar a criação artística, se há tantos espectáculos que subsistem só com as suas próprias receitas de bilheteira? Que critérios adoptar para justificar a aposta em determinados investimentos, sobretudo quando essa aposta implica a definição de prioridades e tratamentos diferenciados?

Independentemente das diferentes posições políticas, há alguns pontos que, se aceitarmos o que está na Constituição e o princípio de que o contacto da população com as diferentes artes é factor de enriquecimento pessoal, de coesão social e, portanto, factor de desenvolvimento, dificilmente poderão ser rebatidos.

Em primeiro lugar, a diversidade – compete ao Estado assegurar que se mantém à disposição dos cidadãos um leque de propostas artísticas e estéticas suficientemente alargado para que estes possam contactar com elas e, a partir daí, formular os seus próprios juízos críticos. Dir-se-á, numa perspectiva liberal, que o mercado se encarrega de proporcionar isto mesmo. O vastíssimo consenso que existe em Portugal quanto à utilidade de continuarmos a ter uma televisão e uma rádio públicas, apesar da abertura dos canais privados, mostra, a nosso ver, quão errada é essa perspectiva. O mercado não assegura a diversidade – segue, por definição e por necessidade, os interesses da maioria. Gera homogeneização, gera indiferenciação, gera empobrecimento. Sem impedir o funcionamento do mercado, compete pois ao Estado assegurar que as minorias não vêem os seus direitos diminuídos pelo facto de o serem.

Em segundo lugar, a qualidade. Afirmar que não se pode avaliar a qualidade de uma criação artística, porque isso é do domínio do subjectivo, é uma falsidade. Estamos, é certo, no domínio do imaterial, mas há indicadores objectivos para fazer comparações, para avaliar projectos, espectáculos e outras obras de arte. A reacção do público que deles usufrui, naturalmente, mas também a crítica especializada, o reconhecimento “entre pares”, a adequação dos resultados aos objectivos e aos critérios estabelecidos nas políticas culturais. Assim estes existissem, formulados de uma forma clara e consequente.

Em terceiro lugar, a responsabilidade. Faz todo o sentido que, a par de um sector público forte e estruturante na área da cultura (onde se incluem os Teatros e Companhias Nacionais, por exemplo), o Estado se relacione com um conjunto alargado de parceiros, de criadores e produtores particulares que lhe permitam assegurar a diversidade e a qualidade e aos quais deve exigir, em troca, responsabilidade. A lógica dos “subsídios” é absolutamente contrária a esta exigência – o Estado desresponsabiliza-se e abstém-se de responsabilizar aqueles a quem distribui dinheiros públicos. Defendemos exactamente o oposto: uma contratualização rigorosa com esses parceiros, estabelecendo direitos e obrigações. Com o máximo de transparência, sem margem para arbitrariedades. Contratos com prazos definidos, com acompanhamento e avaliações regulares. Contratos que, para serem justos, têm que proporcionar aos agentes condições mínimas para que estes possam desempenhar bem o seu papel.

Referimo-nos, por fim, à questão da liberdade criativa, alegadamente posta em causa pela “excessiva dependência” dos dinheiros públicos. As discussões sobre as interferências dos governos na linha editorial da televisão pública ilustram, aparentemente, esse perigo. É uma falsa questão, que pretende corromper o princípio com as deficiências da prática. Que existem políticos com a tentação de impor os seus gostos e as suas amizades na aplicação de uma política cultural, não temos nenhuma dúvida.

Esse é um dos “perigos” da democracia, para o qual existem, no entanto e apesar de algumas insuficiências, mecanismos de controlo por parte dos cidadãos. A ilusão de que é no mercado que se alcança uma maior liberdade é particularmente evidente na área da cultura. Veja-se, por exemplo e sem entrar em juízos de valor sobre a sua qualidade, o tipo de espectáculos apresentados em Portugal nos últimos anos sem apoio do Estado.

Diversidade, qualidade, responsabilidade e liberdade criativa são, portanto, os quatro pilares essenciais do que defendemos como serviço público na área da cultura e que têm marcado o nosso trabalho ao longo de 15 anos.

É isso que consideramos que valia a pena discutir em Coimbra. É neste debate, de dimensão nacional, que Coimbra devia e podia assumir um papel preponderante.