Capital Europeia da Cultura: a lição que Coimbra (não) aprendeu

João Maria André
(A Cabra, Outubro de 2006)



Estávamos em 2003. O ano em que Coimbra foi Capital Nacional da Cultura. Muito antes do seu termo e antes, por isso, de qualquer balanço, a ideia era lançada por Abílio Hernandez Cardoso, presidente da estrutura que coordenou aquele evento: olhar longe significa pensar na candidatura de Coimbra a Capital Europeia da Cultura em 2012. Para uns, parecia o corolário lógico de um percurso que estabelecera esta cidade como primeira capital nacional da cultura. Alguns terão olhado para esta antecipação com indiferença. Outros com o natural pessimismo de quem já fazia um balanço pouco positivo de uma iniciativa que, então, ainda não tinha terminado, mas já oferecia campo aberto à crítica, à desconfiança ou à afirmação do fracasso. Coimbra, 2012 – Capital Europeia da Cultura? E porque não? — deveriam ter perguntado muitos outros, nomeadamente os que já então ocupavam, como ainda hoje, a cadeira do poder...
Mas uma candidatura destas não se dá de bandeja... Ou se merece, ou se esquece. E, ao que parece, muitos ter-se-ão esquecido de uma evidência tão simples. Houve quem se esquecesse de que só se tem o que se merece, ainda o evento da Capital Nacional da Cultura estava em fase de encerramento. Diálogo, convergência, solidariedades entre as entidades que protagonizam os traços com que a cidade mostra o seu rosto cultural ao país e ao mundo?! Onde? Que eventos culturais, depois de Coimbra 2003, puderam contar com sinergias de agentes diferentes? Dos grandes parceiros que terão inicialmente dado corpo à Capital Nacional da Cultura, cada um voltou ao seu quintal, cada um voltou a puxar dos seus “galões”, cada um tentou mostrar que, afinal, valia mais do que os outros... Novas infraestruturas para actividades culturais?! Mas nem algumas que então já estavam anunciadas ou cuja construção já tinha começado foram inauguradas oficialmente... Fortalecimento do tecido empresarial das artes e da cultura em Coimbra?! Quantas empresas produtoras de espectáculos ou de actividades culturais surgiram? Como está o mercado de trabalho para aqueles que frequentaram cursos de produtores culturais organizados pela própria Capital Nacional da Cultura? Mais: quantos dos produtores culturais que trabalharam em Coimbra 2003 podem afirmar que têm hoje um posto de trabalho assegurado?
Coimbra – 2012, Capital Europeia da Cultura? Porque não? E porque sim? O que fez Coimbra para merecer a candidatura? Se Cultura é património, ciência, cidadania, educação, arte, espectáculos, ousadia na celebração do passado e na invenção da festa do futuro, que fez Coimbra para hoje, passados três anos sobre a Capital Nacional da Cultura, merecer essa distinção daqui a seis anos? Pode a recuperação patrimonial em Coimbra apresentar-se como um exemplo a seguir? Pode o investimento em infraestruturas ligadas à vida artístico-cultural considerar-se um exemplo a seguir? Podem os poderes da cidade e do município apresentar o seu respeito pelos actores culturais, pelos criadores artísticos e pelos traços vivos de uma cidade em trânsito como um exemplo a seguir?
A Universidade de Coimbra candidata-se pela sua memória viva, pelo seu património histórico e pelo seu complexo arquitectónico a Património Mundial. A Reitoria da Universidade, através da Pró-Reitoria para a Cultura, tem vindo a manifestar uma forte aposta na afirmação do rosto cultural de uma instituição que, por vezes, parece hibernar numa passividade arrepiante e, outras vezes, deixar-se cativar por um neoliberalismo assustador. A forma como Bolonha, para além de se casar com a economia, se pode casar com a cultura é algo que ainda não se vislumbra facilmente, a não ser num ou outro assomo de boa vontade da parte de alguns que não figuram entre os protagonistas deste “europeísmo à la minuta”. Mas, ainda assim, e apesar de um certo estrangulamento financeiro em que a Universidade deixou cair o Teatro Académico de Gil Vicente e da recente falta de investimento em equipamento técnico e de segurança que lhe é indispensável, podemos dizer que há muitos e bons sinais de que, desse lado da colina, bastante foi feito para merecer a distinção de uma candidatura a Capital Europeia da Cultura... Para já não falar da “cultura científica”, em que a Universidade tem sabido, em certas áreas, mostrar-se à altura da sua memória.
Também do lado de muitos dos actores culturais o balanço é positivo: mesmo quando o terreno parece minado, mesmo quando o público de Coimbra parece preferir “Floribelas” e “Morangos com Açúcar”, os artistas têm sabido encontrar, ao fundo do túnel, aquela “bruxuleante luz” de que falava Jorge de Sena...
E poderá dizer-se o mesmo das atitudes de quem governa a cidade ao nível da autarquia? Qual o “espectáculo” a que assistimos desde 2003? Que tem feito a autarquia para merecer que esta cidade obtivesse aquela distinção? Casas de espectáculos, espaços desenhados para a arte e para a cultura, funcionando clandestinamente e sem serem oficialmente abertos, continuam por entregar aos criadores que, pela sua actividade, mereceram aquelas residências e que viram esse merecimento fixado em protocolos que permanecem por cumprir... Os acordos com as entidades que, em Coimbra, garantem aos cidadãos o direito constitucional de acesso à arte e à cultura são classificados como lesivos dos interesses da autarquia e são unilateralmente rescindidos numa demonstração de força, poder e discriminação ao serviço da mediocridade... O orçamento para a cultura sofre reduções drásticas que conduzem a uma autêntica asfixia das manifestações culturais e artísticas numa cidade que faz dos festivais de pirotecnia o fogo-fátuo da presunção dos governantes. Alguns dos grandes eventos que faziam já parte da nossa identidade cultural (Festival de Blues, Festival José Afonso, Encontros de Fotografia, Festival Internacional de Música de Coimbra, Coimbra Dança) são eliminados do cartaz ou asfixiados por uma política de subsídios que parece só ter olhos para quem se dobra perante o “prestígio” das “figuras” que detêm o poder, numa promiscuidade aflitiva... E os grupos de intervenção cultural ao nível do teatro, da dança, das artes da imagem e do espectáculo ou vêem sucessivamente adiados os pagamentos dos apoios que lhes foram atribuídos em sessões do executivo municipal ou nem sequer recebem resposta às candidaturas a apoios feitas nos termos dos regulamentos municipais. E, nalguns casos, pasme-se, uma distinção como a medalha de mérito cultural, atribuída em sessão camarária, continua a ser adiada na data da sua concretização, para honra dos assim duplamente distinguidos pelo louvor e pela discriminação da autarquia e para descrédito de quem desse modo se não honra ao faltar às suas obrigações.
O “apreço pela cultura” neste deserto em que vivemos chega mesmo ao ponto de insistir em fazer exposições no átrio de entrada para as casas de banho, entre máquinas de “pronto a comer” e “pronto a beber”, de um edifício que um dia foi designado Casa Municipal da Cultura...
Não ignoramos que, em todo este panorama, há excepções: a Casa Cochofel ou a Casa Miguel Torga são disso o exemplo. Mas é pouca a sua luz em horizonte tão sombrio.
A memória de Coimbra permitiria esperar que as relações entre a cultura e o poder se traduzissem numa fertilização do poder pela cultura. Afinal, a realidade é bem diferente: é o pulmão da cultura que tem vindo, violentamente, a ser perseguido e asfixiado pela força do poder. A candidatura a Capital Europeia da Cultura em 2012 não é uma dádiva: merece-se ou não. Abílio Hernandez tê-lo-á pressentido em 2003. E, nesse pressentimento, talvez tenha tido razão. Mas, como outros, e como nos ensina a História, se teve razão, teve-a antes do tempo. E foi o tempo, os homens e o poder que se encarregaram de nos mostrar, com ironia, que, exactamente por isso, talvez não tivesse inteiramente razão em ter razão.