Orfeu rebelde

Carlos Fiolhais
(Público, 17 de Agosto de 2007; De Rerum Natura, 18 de Agosto de 2007)



No parque da cidade de Coimbra existe uma estátua erguida pela Câmara social-democrata a um poeta e político vivo e activo. Pois foi o estatuado Manuel Alegre quem, no dia 12 de Agosto, inaugurou um monumento a Miguel Torga situado perto da estátua a si próprio – o novo monumento não é uma estátua a Torga apesar de a Câmara, ter em tempos, por unanimidade, aprovado a construção de uma estátua a Torga, num pacote que incluía várias outras.

No mesmo dia, em que se comemorava o nascimento de Miguel Torga, foi inaugurada uma casa-museu a Miguel Torga, em cujo quintal a Câmara quer construir um Centro de Estudos Torguianos. A ocasião foi aproveitada por António Arnaut, um dos fundadores do Partido Socialista, e por Carlos Encarnação, Presidente da Câmara de Coimbra, para lamentar a ausência de um representante do governo. Se me é permitido uma opinião e com o devido respeito pela opinião contrária, o governo fez muito bem em não estar presente. Não, não é por ser férias e os membros do governo terem tanto direito a férias como nós. É, em primeiro lugar, porque já tinha estado presente e em força – o Primeiro Ministro e a Ministra da Cultura – no dia 24 de Junho no lançamento do Espaço Miguel Torga em São Martinho de Anta, Vila Real, terra-natal do escritor. Trata-se de uma obra do arquitecto Souto Moura que custará ao Estado 1,7 milhões de euros, o que contrasta flagrantemente com a modéstia do projecto coimbrão, que orçou em 324 mil euros (não sei quanto custará o Centro de Estudos, mas deve ser barato para caber no jardim). O projecto em Trás-os-Montes, que albergará um centro de estudos a funcionar em rede com outros, poderá constituir um excelente pólo de desenvolvimento numa zona interior que bem necessita de investimentos como esse. Em segundo lugar, por muita consideração que Miguel Torga nos mereça – e merece! - não penso que seja uma boa ideia multiplicar casas e centros de estudos em sua homenagem, na tentativa ridícula de cada terra ou cada pessoa ter mais protagonismo político-cultural. A quantidade de pequenas casas-museus sem meios decentes nem actividades visíveis que pululam pelo país dever-nos-ia fazer pensar! E os centros de estudos sortidos e avulsos pouco fazem avançar a investigação… A Câmara de Coimbra, nesse aspecto de casas dedicadas à literatura, é um enorme desatino: além da nova Casa-Museu, planeia há muito um Fórum Miguel Torga na Estação Nova, que não se sabe quando estará pronto nem para que servirá, e está a fazer na Alta uma “Casa da Escrita” num prédio que foi de João José Cochofel (um poeta neo-realista coimbrão que poucos conhecem). Não seria mais útil projectar uma grande biblioteca e arquivo com projecção nacional e internacional?

Há também neste caso um problema político. O PSD quis aproveitar a ausência da Ministra da Cultura na homenagem da câmara coimbrã a Torga como mais uma munição de arremesso ao governo. Tanto foi assim que o seu deputado que tinha apresentado um texto condenatório da sanção a Dalila, a afastada Directora do Museu da Arte Antiga, logo acrescentou um P.S. (post-scriptum) relativo a Miguel Torga. E, pasme-se, nesse PS foi ajudado pela oposição interna no PS… Isso só mostra a debilidade da oposição ao governo e a debilidade da alternativa dentro do partido do governo. Há um óbvio equívoco do maior partido da oposição pois a adenda sobre Torga só desvaloriza a crítica justa e oportuna que merece o Ministério da Cultura por desbaratar uma profissional competentíssima, com provas dadas no lugar que ocupava. Pensará o governo que está a fazer um bom serviço à “res publica” ao desperdiçar os melhores talentos? E pensará que se devem desperdiçar as sugestões, comentários e críticas de quem tem uma bem sucedida experiência de gestão?

Além do mais, o aproveitamento político do centenário de Torga é uma perfeita tontaria, que nem mesmo a “silly season” justifica. O escritor deve estar a dar voltas na sua campa de São Martinho de Anta, pois ele sempre foi um homem íntegro e independente que não usava ninguém nem gostava de ser usado. O Orfeu rebelde revoltar-se-ia!

Post Scriptum: Na versão deste artigo publicada no "Público", por deficiente informação, escrevi que o deputado Manuel Alegre teria criticado, tal como o Presidente da Câmara coimbrã, a ausência do governo da cerimónia. Ele teve a amabilidade de me esclarecer que, apesar de achar lamentável a ausência do governo, de facto não afirmou isso em público. Agradeço a correcção.