(Diário de Coimbra, 7 de Setembro de 2007)
No senso comum a noção de cultura tende a confundir-se com “alta cultura”, isto é, o conjunto de conhecimentos eruditos, que se exprime nas dimensões artística, literária, filosófica, musical, etc., apenas acessível às elites. Embora se trate de um conceito com múltiplos sentidos, as ciências sociais entendem a cultura numa perspectiva mais abrangente, como “um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, assim como de formas simbólicas através das quais se expressa ou se encarna”. Por exemplo, as comunidades indígenas, os grupos étnicos, e as camadas populares em geral possuem também as suas formas particulares de expressão cultural.
As sociedades agrárias ou pré-industriais da Europa, bem como as comunidades étnicas que ainda hoje subsistem em muitas regiões do globo, acumularam um riquíssimo património de tradições, rituais, costumes, inclusive musicais e artísticos – isto é, a cultura tradicional ou étnica – que são expressão da sua identidade colectiva. Esta noção pode, assim, distinguir-se da cultura erudita (ou “alta cultura”) e da cultura de massas, a qual se liga à chamada “indústria da cultura” que promove a comercialização “em massa” de todo o tipo de bens simbólicos e culturais. No mundo global e multicultural de hoje, assiste-se a uma luta pelo reconhecimento em que a divulgação e apropriação de símbolos das culturas indígenas (tradicionais ou locais) são reflexo do processo mais geral de reconversão identitária que atinge os povos e as comunidades do mundo inteiro. A questão cultural é, pois, um assunto complexo, que encerra múltiplas conflitualidades e se reveste de contornos políticos.
À medida que as sociedades se industrializaram e desenvolveram, a expansão do mercado, a concentração urbana e a força crescente da economia capitalista, geraram uma ampla classe trabalhadora assalariada, que cresceu a partir dos centros industriais e deu lugar à cultura popular. Esta – que, de resto, também não é homogénea, mas sim diversa e plural – emergiu, no fundo, da mistura de elementos da tradição rural com os novos estilos de vida urbanos e sub-urbanos (mais adaptados ou mais rebeldes) da sociedade moderna. Nas sociedades europeias do século XIX – e em Portugal sobretudo ao longo do século XX – estas formas de cultura tradicional foram profundamente transformadas e readaptadas perdendo muitos dos seus ingredientes originais.
O folclore (da noção inglesa “folk” = povo) resulta desse processo. Ele não é senão a versão adulterada e manipulada de formas artísticas de raiz popular por parte do Estado e do mercado. Foi isso que aconteceu no caso português quando Salazar, auxiliado pelo seu ideólogo de serviço, António Ferro, e pela Igreja católica, traçou uma estratégia minuciosamente planeada que investiu fortemente na domesticação e instrumentalização das festividades populares, da arte e da música tradicional, com isso promovendo o entretenimento inócuo e passivo das classes trabalhadoras. Instituições fascistas como a FNAT (a famigerada fundação nacional para a alegria no trabalho), copiada do modelo nazi, foi criada especificamente com esse propósito. Assim, o povo estaria entretido, esqueceria os sindicatos e afastar-se-ia da tentação subversiva (comunista ou outra). Em nome da nação, da devoção religiosa, da ordem e da disciplina erigiu-se o folclore português como produto nacional a exibir ao estrangeiro, expressão da nossa alegria dócil e dos “brandos costumes”. O folclore, ontem como hoje, não é senão a negação da verdadeira cultura e tradição popular.
No Portugal democrático do pós-25 de Abril a cultura popular acompanhou as tendências políticas de cada contexto e as suas manifestações foram igualmente sendo readaptadas ao sabor dos diferentes ciclos. De uma fase em que o povo era, como dizia a canção do Zeca, “quem mais ordena” (quando os movimentos populares inundavam as ruas), evoluiu-se para o individualismo, o consumismo massificado e, outra vez, para o divertimento alienante, agora com a suprema ajuda das televisões, dos saudosistas do folclore e do mercantilismo reinante.
Assim, as diferentes dimensões da cultura (erudita, popular ou étnica), longe de serem espaços confinados e estanques, são dotadas de dinamismo, dialogam e contaminam-se umas às outras, embora sob lógicas contraditórias e conflituantes. Nos dias de hoje, dada a força esmagadora do mercado – de bens materiais e de bens simbólicos, nomeadamente através da TV –, todas essas dimensões cedem à mesma pressão uniformizadora que apenas busca a ampliação das audiências e dos consumos. É por essa razão que cabe às entidades responsáveis, aos criadores e aos agentes culturais resistir a essa lógica e abrir as diferentes formas de expressão cultural a novos públicos, dando primazia à qualidade e à criatividade. (continua)
As sociedades agrárias ou pré-industriais da Europa, bem como as comunidades étnicas que ainda hoje subsistem em muitas regiões do globo, acumularam um riquíssimo património de tradições, rituais, costumes, inclusive musicais e artísticos – isto é, a cultura tradicional ou étnica – que são expressão da sua identidade colectiva. Esta noção pode, assim, distinguir-se da cultura erudita (ou “alta cultura”) e da cultura de massas, a qual se liga à chamada “indústria da cultura” que promove a comercialização “em massa” de todo o tipo de bens simbólicos e culturais. No mundo global e multicultural de hoje, assiste-se a uma luta pelo reconhecimento em que a divulgação e apropriação de símbolos das culturas indígenas (tradicionais ou locais) são reflexo do processo mais geral de reconversão identitária que atinge os povos e as comunidades do mundo inteiro. A questão cultural é, pois, um assunto complexo, que encerra múltiplas conflitualidades e se reveste de contornos políticos.
À medida que as sociedades se industrializaram e desenvolveram, a expansão do mercado, a concentração urbana e a força crescente da economia capitalista, geraram uma ampla classe trabalhadora assalariada, que cresceu a partir dos centros industriais e deu lugar à cultura popular. Esta – que, de resto, também não é homogénea, mas sim diversa e plural – emergiu, no fundo, da mistura de elementos da tradição rural com os novos estilos de vida urbanos e sub-urbanos (mais adaptados ou mais rebeldes) da sociedade moderna. Nas sociedades europeias do século XIX – e em Portugal sobretudo ao longo do século XX – estas formas de cultura tradicional foram profundamente transformadas e readaptadas perdendo muitos dos seus ingredientes originais.
O folclore (da noção inglesa “folk” = povo) resulta desse processo. Ele não é senão a versão adulterada e manipulada de formas artísticas de raiz popular por parte do Estado e do mercado. Foi isso que aconteceu no caso português quando Salazar, auxiliado pelo seu ideólogo de serviço, António Ferro, e pela Igreja católica, traçou uma estratégia minuciosamente planeada que investiu fortemente na domesticação e instrumentalização das festividades populares, da arte e da música tradicional, com isso promovendo o entretenimento inócuo e passivo das classes trabalhadoras. Instituições fascistas como a FNAT (a famigerada fundação nacional para a alegria no trabalho), copiada do modelo nazi, foi criada especificamente com esse propósito. Assim, o povo estaria entretido, esqueceria os sindicatos e afastar-se-ia da tentação subversiva (comunista ou outra). Em nome da nação, da devoção religiosa, da ordem e da disciplina erigiu-se o folclore português como produto nacional a exibir ao estrangeiro, expressão da nossa alegria dócil e dos “brandos costumes”. O folclore, ontem como hoje, não é senão a negação da verdadeira cultura e tradição popular.
No Portugal democrático do pós-25 de Abril a cultura popular acompanhou as tendências políticas de cada contexto e as suas manifestações foram igualmente sendo readaptadas ao sabor dos diferentes ciclos. De uma fase em que o povo era, como dizia a canção do Zeca, “quem mais ordena” (quando os movimentos populares inundavam as ruas), evoluiu-se para o individualismo, o consumismo massificado e, outra vez, para o divertimento alienante, agora com a suprema ajuda das televisões, dos saudosistas do folclore e do mercantilismo reinante.
Assim, as diferentes dimensões da cultura (erudita, popular ou étnica), longe de serem espaços confinados e estanques, são dotadas de dinamismo, dialogam e contaminam-se umas às outras, embora sob lógicas contraditórias e conflituantes. Nos dias de hoje, dada a força esmagadora do mercado – de bens materiais e de bens simbólicos, nomeadamente através da TV –, todas essas dimensões cedem à mesma pressão uniformizadora que apenas busca a ampliação das audiências e dos consumos. É por essa razão que cabe às entidades responsáveis, aos criadores e aos agentes culturais resistir a essa lógica e abrir as diferentes formas de expressão cultural a novos públicos, dando primazia à qualidade e à criatividade. (continua)