Odessa, a cidade a cultura

Elísio Estanque
(Diário de Coimbra, 17 de Fevereiro de 2008)



Olhar a cultura de uma cidade como uma actividade restrita a uma pequena elite diletante corresponde a considerá-la inócua do ponto de vista do desenvolvimento democrático e do património urbano. Mas mesmo em tais casos a cultura é sempre um elemento vivo e dinâmico que se transfigura, resiste e readapta. Ainda que ameaçada por interesses privados e pela ausência de estratégias que a dinamizem, a cultura está inscrita na memória e na identidade colectiva de qualquer cidade.

Acabei de assistir a um espectáculo de ballet – o clássico Lago dos Cisnes – no magnifico Teatro Nacional de Ópera e Ballet em Odessa, um monumento que é a jóia da coroa da cidade e que permanece impecavelmente preservado e activo. Esta interessante cidade não é hoje (infelizmente, dir-se-ia) propriamente um exemplo de boa gestão do património, desde logo porque o país em que se insere debate-se com problemas estruturais de outra natureza.

Odessa tornou-se um nome internacionalmente conhecido (de cinéfilos e intelectuais) em larga medida à custa do famoso filme “O Couraçado de Potenkin” de Eisenstein. Fundada em 1794, teve como governador o duque de Richelieu, cuja ajuda militar foi decisiva na anexação do território ao império turco por Catarina II da Russia, esta cidade portuária tornou-se ao longo do século XIX e durante o período estalinista um importante centro industrial e cultural. Pushkin é um dos vultos da poesia russa associados à vida cultural da cidade (por nela ter estado exilado), marcada também por uma influente comunidade judaica e pela presença de fortes referências da cultura ocidental, inclusive ainda hoje visíveis por exemplo na arquitectura italiana e francesa. Apesar da degradação ter atingido alguns dos seus edifícios mais dignos, a estrutura urbana, que se estende por um suave planalto virado a Leste para o Mar Negro, mantém a sua geometria rectilínea e as avenidas largas com piso de paralelepípedo, preservando ainda a dominância de uma construção elegante e esteticamente sofisticada. A escadaria Potenkin preserva também toda a sua imponência, mostrando aos visitantes, marinheiros ou não, que após aportarem na marina de Odessa, teriam ainda que subir os cerca de 200 degraus para atingirem o fantástico Boulevard Primorsky, com as suas frondosas árvores a conduzirem o recém-chegado até à Rua Deribasovskaya e por via dela a penetrarem as amplas alamedas ou a deixarem-se conduzir até ao magnífico edifício do Teatro Nacional de Opera e Ballet.

Tudo isto deixa antever uma cidade fantástica. Debruçada sobre as águas tranquilas do mar negro, a abundante vegetação é parte integrante deste quadro dinâmico e multicor. Os tons de intenso verde no Verão adquirem novas tonalidades de amarelo, castanho e vermelho no Outono, para se transfigurarem nas longas filas de troncos esquálidos e cobertos de neve no Inverno. Tudo isto é realidade, mas apenas uma parte.

A realidade mais evidente é, porém, outra, nos dias de hoje. E é esta que pesa sobre o desprevenido visitante, que se vê de repente no meio de uma cidade cinzenta e suja, no caos ruidoso dos carros a invadir passeios, portões e jardins, nas ruas esburacadas e com os tampos dos esgotos a funcionarem como autenticas emboscadas, os edifícios oitocentistas a torcerem-se e a ameaçarem cair-nos em cima, os mamarrachos de edifícios “modernos” a invadirem o porto e as praias da periferia, como a Arcádia – antiga instancia balnear popular durante o regime soviético, hoje totalmente degradada –, invadida por indescritíveis construções em plena praia e por um ror de actividades revestidas de novo-riquismo misturado com abundantes vestígios das velhas e deprimentes estruturas estalinistas.

Por outro lado, a avaliar pela quantidade de jeeps todo-o-terreno de alta gama – apetrechados com os inevitáveis vidros negros e muitas vezes até munidos de pirilampos de sinalização prioritária, a mostrar que são de facto quem detém o poder, mesmo que não a autoridade – dir-se-ia que a classe média-alta vem crescendo na Ucrânia. Há aliás um flagrante e chocante contraste entre esta ostentação de novo-riquismo e a precariedade e degradação que marcam os transportes públicos da cidade e do país. Também nos automóveis se nota o hiato entre aquelas impressionantes “bombas” e os modelos do tempo soviético ainda em uso, como os Zaporojetc ou os Fiat Jiguli a caírem de podres. Os modelos modernos mas mais acessíveis, ao alcance da classe trabalhadora, são comparativamente raros. E isto parece um reflexo directo das desigualdades sociais do país e dos seus problemas sociopolíticos. Os grandes negócios e a dinâmica de acumulação de riqueza misturam-se e confundem-se com a corrupção e o poder das redes mafiosas que, por sua vez, corroem e instrumentalizam as instituições e o próprio Estado. Odessa poderia ser uma fantástica cidade cultural. Mas a realidade politica e dos poderes instalados (institucionais ou outros), mesmo que não destruam a cultura – porque tal não é possível – conseguem coarctar e desbaratar em larga medida o potencial do seu riquíssimo património histórico, cultural e urbano.