depoimentos: Luís Reis Torgal

Conforme disse no início deste processo, e agora reafirmo, aceitei assinar o documento “Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura!” porque com ele concordo no essencial. Mas terei de dizer que o fiz com algumas reservas, naturais neste tipo de situações. Estas reservas estão ligadas não só a alguns pormenores do texto, que acho desnecessários, e à falta de outros pontos, que acharia necessários, mas ao tom que o caracteriza. Ou seja assino pela matéria, embora possa gostar menos da forma. O que penso que se deveria fundamentalmente contestar — e isso está lá, mas num tom que não me agrada muito — é a estratégia cultural da Câmara ou a ausência de estratégia, apesar da falta de verbas dos municípios, que calculo ser um facto nos tempos que correm. Por outras palavras ainda, há que discutir a política cultural global do país e, assim, a política da Câmara de Coimbra, ou por ordem inversa.

O texto, na verdade, reflecte muito as polémicas concretas da Escola da Noite (que tenho seguido com interesse e preocupação, até porque vejo normalmente, com muito agrado, as peças que leva a cena) e outras polémicas específicas, e entra em pormenores que não me parecem elegantes ou claros: por exemplo, “o átrio da casa de banho [da Casa da Cultura] transformado em espaço de exposições” ou a recusa em “pagar as despesas de electricidade” (de quê? do CAV ou do Teatro da Cerca de S. Bernardo?). Isto, apesar de concordar que é preciso contestar com firmeza a falta de condições que são dadas a companhias como o Bonifrates, que demonstra (como a Escola da Noite e alguns outros grupos de teatro) grande qualidade, contestação que vejo na referência à “garagem imunda e sucessivamente inundada a servir de entrada para um teatro-estúdio…”. Com efeito, acho que só a grande dedicação e um verdadeiro sentido de profissionalismo, e amor à arte, explicam que uma companhia com a categoria da Bonifrates continue a trabalhar num espaço daqueles, que considero inadmissível.

Por sua vez, entendo que se deveria ter aproveitado o ensejo para falar na falta de uma política cultural relativamente a outros espaços e meios urbanos. Se considero oportuno falar do teatro, da música e das “artes visuais”, entendo, na verdade, que se deveria referir outros temas que nos preocupam — a mim que, tanto quanto posso, assisto aos espectáculos de teatro e de música, a exposições, conferências e debates, ao cinema…, para além de caminhar por aí pela cidade e de andar por vezes em transportes públicos. Tenho pena, com efeito, que nunca, ou quase nunca, se debatam outros assuntos ou, quando se debatem, não passem de fogachos, que logo desaparecem. Vou enumerar alguns aspectos, que deveriam de alguma forma, embora em termos gerais, constar do documento, os quais, todavia, nem sempre dizem respeito à acção (ou à falta de acção) desta presidência da Câmara e sim à acção (ou à falta dela) de presidências anteriores:

1. Como é que se permitiu que em Coimbra desaparecessem cinemas, teatros e casas de espectáculo de referência, como o Avenida (em primeiro lugar), o Tivoli e o Sousa Bastos, quando em muitas cidades e vilas do país se viu e vê um movimento de reabilitação e restauro destes espaços?! Aqui, transformaram-se ou em centros comerciais de “morte anunciada” (o Avenida — sobre o qual quase não houve uma palavra de contestação, mesmo ultimamente, quando os cinemas do centro comercial desapareceram engolidos pelos macro-shoppings que cercam a cidade), ou em lojas de multinacionais (o caso do Tivoli) que as abandonam num processo de “deslocalização”, que já se tornou um caso normal, logo que se verifica que há outros interesses a seguir, ou em ruínas (o Sousa Bastos, em relação ao qual houve ainda um movimento de luta, logo abandonado, devido à inércia de todos nós, ao natural esgotamento de energias dos seus dignos militantes e à falta de iniciativa da Câmara).

2. A ausência de uma política cultural para a “baixa” e para a “alta” (neste caso com eventuais responsabilidades da própria Universidade — veja-se o que sucede com o Colégio da Trindade, que se poderia transformar num espaço cultural e comercial ligado à Universidade, mas que se mantém em ruínas, à eternamente espera de um tal “Colégio Europeu” que não sabemos muito bem o que é). O “regresso à vida” destes espaços nobres da cidade não se resolve com “programas de animação”, normalmente efémeros. Na “baixa” comercial (que até já quiseram cobrir!) os cafés tradicionais, em lugar de se manterem e desenvolverem como lugares de tertúlia e de encontro (salva-se o caso do Santa Cruz, um “café com história”), e até de memória (como sucede em Salamanca, no Novelty, com a memória de Unamuno e do “Nobel” Camilo José Cela — no nosso caso, se quiséssemos, com a memória de Paulo Quintela ou de Torga), desapareceram (os casos do Internacional, do Arcádia, da Brasileira, da Central…) e todos deram lugar a lojas que em breve dão ou darão lugar a outras. E os esforços para os reabilitar, como recentemente sucedeu com a Brasileira, por parte do vereador Jorge Gouveia Monteiro, chocaram com a indiferença ou com a falta de leis para obrigarem certas áreas a serem consideradas lugares de utilidade pública. Mas, devemos admirar-nos, quando se destruiu em Lisboa a casa onde Garrett morou e quando o edifício da PIDE, na rua António Maria Cardoso (lugar de memória contra o Estado Novo), se transformou num condomínio de luxo?!

3. O mesmo sucede com lojas tradicionais que deveriam merecer o apoio da edilidade, algumas lojas até que, pela sua beleza, são catalogadas em guias internacionais como lugares de visita para os turistas, como a Farmácia Nazareth ou os Marthas, onde existiu o primitivo hospital. Um dia, com certeza, serão (ou já o foram) modernizadas ou, pura e simplesmente, caem, como pode suceder com a que é considerada a mais antiga casa de Coimbra, por detrás de S. Bartolomeu, que viu abater-se um prédio quase ao seu lado. E o mesmo pode acontecer — se não caiu está para cair… — com a única fábrica tradicional de cerâmica antiga existente em Coimbra, situada no Terreiro da Erva, para que alertei o vereador da Cultura, sem que até agora nada se tivesse feito.

4. E, para terminar este rol de destruições, recordo o caso dos “eléctricos”, onde nem se conseguiu manter uma ou duas linhas (que são verdadeiros museus móveis), como sucedeu em Lisboa e no Porto, em S. Francisco ou em Istambul… Em Braga já se fala da sua recuperação (como tem sucedido em outras cidades do mundo — veja-se o caso de Santos, no Brasil, que há alguns meses conheci), mas o mesmo não sucede em Coimbra. Aqui fala-se, sim, do Metro de superfície…! Discordei publicamente do exagerado interesse que se lhe estava a dar, até porque provocaria naturalmente a destruição de mais algumas casas na “baixa”. Agora, porém, depois de tantos anos de se falar do Metro, com a criação de uma empresa, que tem dado emprego a alguns e com certeza chorudos “tachos” a outros, já nem sequer tenho coragem de ser “contra”, nem de assinar um manifesto tardio que por aí correu. O melhor é que o Metro venha… e o mais depressa possível.

5. Complementarmente quero lamentar que, prevendo-se para breve a saída da Penitenciária do centro de Coimbra — o que há muito parece a todos uma decisão acertada e urgente —, a Câmara e a Universidade não tenham já pensado seriamente na utilização do espaço, como fundamental para activar essa área nobre da cidade. Antes de ser Penitenciária, ficava ali, como se sabe, um colégio universitário, o Colégio da Ordem de Cristo ou de Tomar, pelo que, se não deve ser devolvido na sua totalidade à sua origem escolar, assim como deveria ter sucedido com vários outros colégios, como alguns da rua da Sofia, deve constituir um espaço essencialmente universitário ou cultural, como prolongamento natural do pólo 1 da Cidade Universitária e da Casa Municipal da Cultura. A meu ver, deveria ser ali edificada uma grande Biblioteca Universitária e Municipal, com os meios modernos das actuais bibliotecas, deixando vago o actual edifício da BGUC, mais do que ultrapassada para biblioteca, para o Arquivo da Universidade, que é também — recorde-se — o Arquivo Distrital. Assim, as autoridades autárquicas e universitárias deveriam estar neste momento em diálogo com o governo sobre o assunto, a fim de poderem planear com antecedência e determinação a utilização desse espaço, que, para além da Biblioteca, pode e deve ser uma zona ajardinada que inicia a área verde que ali deve começar (ou que se inicia, na verdade, no Parque de Santa Cruz) e, atravessando o Jardim Botânico, ligará a Universidade e o centro cultural da cidade ao Parque Manuel Braga. Isso sem prejuízo de ali se poderem vir instalar ainda outros pequenos edifícios com finalidade cultural e comercial o mais possível ligada à concepção de um espaço de lazer e de cultura.

Tudo isto é cultura e deveria interessar-nos, pelo que julgo que não nos deveríamos apenas ficar por alguns pontos sensíveis no momento, com um texto importante mas que me parece um pouco conjuntural. Acho bem que se conteste, portanto, a “política cultural” da Câmara (ou a falta dela) e do país. Assim, aceitei, apesar de o fazer com alguma reticência, assinar este texto, mas entendo que ele seria muito melhor aceite se tivesse outra lógica — fosse mais crítico e menos personalizado, mais estrutural e menos conjuntural, menos pormenorizado e mais alargado a outras realidades que são também “cultura”. E não entro, obviamente, nessa estúpida discussão da “cultura erudita” e da “cultura popular”…, que só o provincianismo pode acender. E Coimbra não é (não pode ser) uma cidade provinciana, como não o é a sua Universidade.


Luís Reis Torgal