Gostaria de fazer a intervenção como se estivesse na plateia, porque também tenho direito a emitir a minha opinião. Dei a minha voz às palavras do António Pedro Pita e gostava de tecer três ou quatro considerações a propósito do tema deste debate, que é sobre a articulação entre cidade, arte e política e sobre o valor estratégico da cultura.
Vou ser muito telegráfico, para não demorar muito tempo e porque algumas das ideias que estão subjacentes ao que penso já foram contempladas. Considero que só poderemos construir uma política cultural consistente, que assente e respeite o valor estratégico da cultura, se conseguirmos resolver de uma maneira equilibrada quatro (eu enumeraria para já quatro) grandes tensões que atravessam a relação da cultura e da arte com a cidade, e que têm a ver exactamente com esse papel estratégico da cultura. Essas quatro grandes tensões, que não podem ser resolvidas a caminhar apenas para um dos pólos dessa tensão (por isso falo na resolução equilibrada dessas quatro grandes tensões) são aquilo que chamaria a tensão entre o pulmonar (ou o pluralismo pulmonar) e o insular, a tensão entre a solidez e a liquefacção, a tensão entre a criatividade e a planificação e a tensão entre o endógeno e o exógeno. Passo a explicitar.
A tensão entre o pulmonar e o insular, ou entre o pluralismo pulmonar e o insular. Para mim, a cultura é o pulmão de uma cidade (entendendo aqui a cultura no singular). Mas quando falamos da cidade e da cultura, falamos também da cultura no plural, falamos de equipamentos culturais, falamos de espaços de criação e de usufruto da cultura. O que é importante perceber é que é necessário pensar a distribuição desses espaços como vários pulmões dentro de um todo vivo que é esta cidade. Há alguns pulmões que estão aqui a funcionar e que têm funcionado – alguns deles, talvez, mais insularmente do que articuladamente e em rede, mas não há ainda um pensamento sobre a estruturação dos diversos pulmões – e quando falo de diversos pulmões falo de diversos espaços com multiplicidade de tendências artísticas. É evidente que estamos neste momento num pulmão que é um dos pulmões culturais desta cidade. Há outros: há a Oficina Municipal do Teatro, há o Museu dos Transportes, há o Centro de Artes Visuais, há vários pulmões e são necessários outros, porque a cidade não é apenas o espaço da Praça da República para o lado de São José, ou para o lado do rio. Há neste momento uma série de iniciativas extremamente importantes e uma série de potencialidades criadoras da parte de pequenas associações, de pequenas instituições que estão a avançar com coisas muito novas e que têm de se transformar também em pulmões desta cidade, em pulmões que se articulam uns com os outros. Por isso é que falo numa dimensão pluralisticamente pulmonar em equilíbrio tensional com a dimensão insular. Cada um destes pulmões tem tendência para se afirmar na sua autonomia e na sua identidade própria, mas não pode construir e entrar na vida cultural da cidade à margem dos outros pulmões. Há aqui necessidade de um articulação que é uma articulação que tem que, ao mesmo tempo, nascer de baixo e ser proporcionada a partir de cima por quem gere a política cultural autárquica.
Segunda tensão – a tensão entre a solidez e a liquefacção, ou seja, a tensão entre a cultura na sua dimensão estruturante, na sua dimensão sólida, e a efemeridade de muitas criações culturais. Há muitas criações culturais, há muitos projectos, que são efémeros, não são sólidos. Mas não deixam de ser produções, não deixam de ser criações, não deixam de ser actividades culturais. É preciso que uma política cultural consiga equilibrar o carácter estruturante e sólido da cultura com o carácter desta sociedade líquida, como lhe chama Zigmunt Bauman, desta sociedade líquida em que vivemos, desta cultura líquida, desta liquefacção permanente. Porque com a liquefacção permanente tudo se esvai. Mas também apoiando apenas e focando apenas a dimensão sólida da cultura perde-se muito daquilo que pode ser extremamente criativo e extremanente inovador na cultura.
Terceira tensão – a tensão entre a criatividade e a planificação. Considero que a cultura articulada com a criação artística é espontaneidade criadora, é criação. E a planificação é algo que aparentemente se contrapõe à criação e à criatividade. É necessário encontrar um equilíbrio entre esta capacidade criadora, este impulso criador que caracteriza pessoas individuais, que caracteriza grupos, que caracteriza instituições – umas com mais tempo de vida e de intervenção nesta cidade, outras a emergir, outras que vão emergir daqui a dois ou três anos — , é necessário articular essa dinâmica criadora com a capacidade de planificar – planificar espaços, planificar, digamos, a gestão dos tais pulmões de que falei ao início.
Finalmente, a tensão entre o endógeno e o exógeno. O endógeno é aquilo que a cidade produz por si própria, que produz a partir dos seus grupos, a partir dos seus habitantes, a partir das suas dinâmicas internas. Temos de reconhecer que nos últimos quinze, vinte anos, pelo menos, Coimbra tem desperdiçado muitas dinâmicas criadoras que inclusivamente saem daqui e vão, chamemos-lhe assim metaforicamente, pôr os ovos noutros ninhos. Houve muitos criadores que saíram desta cidade, que foram para o Porto, foram para Lisboa, e que inicialmente pensaram desenvolver aqui os seus projectos criativos e que não tiveram espaço para isso. Portanto, é necessário prestar atenção a essa dinâmica endógena e criar espaço para o desenvolvimento e para a promoção dessa dinâmica endógena. Mas é necessário fazer também uma articulação disso com a dinâmica exógena, com aquilo que vem de fora de Coimbra. Se exceptuarmos alguns esforços que têm sido feitos por algumas instituições (esforços muito localizados), Coimbra cada vez está mais fora do circuito dos espectáculos e dos grandes eventos neste país. Quer seja ao nível da circulação de concertos, quer ao nível da circulação de grandes companhias, seja a que título for. O exógeno fecunda o endógeno, também. Ajuda, cria patamares de exigência e as pessoas – os artistas como o público em geral – precisam do contacto tanto com aquilo que se faz em Coimbra como com aquilo que de qualidade é produzido fora de Coimbra e que pode vir a Coimbra – porque nem toda a gente pode ir a Lisboa ou ao Porto ou a Évora ou ao Algarve assistir a um espectáculo. É necessário, também, um equilíbrio desta tensão entre o endógeno e o exógeno, sem sacrificar o endógeno ao exógeno mas sem sacrificar também o exógeno ao endógeno.
Penso que são quatro traços fundamentais, todos eles com aplicação nesta cidade. Falei de tensões que são tensões estruturantes na resolução do valor estratégico da cultura e nas políticas a implementar a partir desse valor estratégico da cultura. Falei no abstracto, mas penso que, para quem conhece bem esta cidade, são quatro tensões que a cidade de Coimbra não tem conseguido resolver de uma maneira minimamente equilibrada e salutar para a sua actividade cultural.
Abílio Hernandez
Obrigado, João André. Antes de dar a palavra, permitam-me só fazer uma pequena observação sobre um ponto que o Doutor João André referiu (tal como, há pouco, também a Ana Pires), que tem que ver com os espaços, com as estruturas culturais, com os pulmões de que falou o João André. Verifico que essas estruturas que são (ou deveriam ser) os pulmões da cidade – estamos numa delas, não é? – estão neste momento ligados a uma série de conflitos, aqueles que a Ana referiu: não conhecemos em que situação verdadeiramente está o Teatro da Cerca (que é um projecto, diga-se, da autarquia anterior), mas sabemos pelo que tem passado; o Museu dos Transportes, que foi um espaço inventado durante a Capital da Cultura e que está a ser usado temporária e provisoriamente pelo Teatrão, está na situação em que está; o CAV tem sido profundamente mal-tratado em Coimbra; o Sousa Bastos, que a cidade deixou morrer, em ruína absoluta; a Casa da Escrita, cujo programa não sabemos se existe; o Convento de São Francisco que vem, há anos também, sem conhecermos uma ideia para esse espaço.
Por vezes, há autarquias que se gabam de gastar milhões de Euros em espaços – estes ou outros. É preciso recordar que não basta gastar dinheiro em espaços (em cimento, já agora). Eu recordo que aquele que devia ser o nosso companheiro de mesa e que não pôde vir hoje, o Manuel Maria Carrilho, como Ministro da Cultura, foi o responsável e o autor de um projecto de recuperação de uma dúzia e meia talvez de cine-teatros pelo país fora. Foi um trabalho notável. Esses cine-teatros, muitos deles, foram recuperados porquê? Porque eram muito velhos? Não foram recuperados porque eram muito velhos – estavam de facto em ruínas, mas porque, apesar de alguns deles serem relativamente novos, nunca tiveram uso. Não basta construir o prédio, o cimento, como quiserem dizer.
(José António Bandeirinha: O Teatro da Cerca é filho bastardo desse rede.)
O Teatro da Cerca, diz o Bandeirinha, é filho bastardo disso.
É preciso definir, primeiro, qual é o modelo de gestão e de financiamento de um espaço. Lembrem-se dos anos que demorou para que soubéssemos qual era o modelo de gestão da Casa da Música – não falo sequer da derrapagem disso. É preciso, definido o modelo de gestão, designar o tipo de direcção artística do equipamento – direcção artística. É preciso assegurar uma equipa técnica que esteja ao serviço da direcção artística. Com o modelo de gestão, equipa técnica e direcção artística, é possível fazer uma programação, programar, estabelecer uma linha programática e dizer: este equipamento é para isto, esta é a nossa proposta, este é o nosso projecto, esta é a nossa linha programática. Só a partir disto podemos ir à procura do último elo da cadeia que são os públicos. Ora o que acontece muitas vezes em Portugal (e quem tem trabalhado nisto sabe muito melhor do que eu) é que muitas vezes começa-se pelo fim: faz-se o cimento, faz-se o prédio, não se sabe quem é que lá vai, que projectos é que vão lá ser feitos, para que é que vai servir, mas serve porquê? Serve porque muitas vezes quem os manda construir, seja a nível central, mas sobretudo ao nível local, tem da cultura aquela visão que o Dr. Claudino referiu como um valor estratégico, que aqui é um valor puramente instrumental da cultura. A cultura paga isto a certo tipo de poder, que ainda por cima se permite dizer que gasta dinheiro com cultura fazendo ou mandando fazer construções, estando a desperdiçar dinheiro em nome da cultura, o que é uma dupla ofensa à cultura, como é evidente.
Por vezes, há autarquias que se gabam de gastar milhões de Euros em espaços – estes ou outros. É preciso recordar que não basta gastar dinheiro em espaços (em cimento, já agora). Eu recordo que aquele que devia ser o nosso companheiro de mesa e que não pôde vir hoje, o Manuel Maria Carrilho, como Ministro da Cultura, foi o responsável e o autor de um projecto de recuperação de uma dúzia e meia talvez de cine-teatros pelo país fora. Foi um trabalho notável. Esses cine-teatros, muitos deles, foram recuperados porquê? Porque eram muito velhos? Não foram recuperados porque eram muito velhos – estavam de facto em ruínas, mas porque, apesar de alguns deles serem relativamente novos, nunca tiveram uso. Não basta construir o prédio, o cimento, como quiserem dizer.
(José António Bandeirinha: O Teatro da Cerca é filho bastardo desse rede.)
O Teatro da Cerca, diz o Bandeirinha, é filho bastardo disso.
É preciso definir, primeiro, qual é o modelo de gestão e de financiamento de um espaço. Lembrem-se dos anos que demorou para que soubéssemos qual era o modelo de gestão da Casa da Música – não falo sequer da derrapagem disso. É preciso, definido o modelo de gestão, designar o tipo de direcção artística do equipamento – direcção artística. É preciso assegurar uma equipa técnica que esteja ao serviço da direcção artística. Com o modelo de gestão, equipa técnica e direcção artística, é possível fazer uma programação, programar, estabelecer uma linha programática e dizer: este equipamento é para isto, esta é a nossa proposta, este é o nosso projecto, esta é a nossa linha programática. Só a partir disto podemos ir à procura do último elo da cadeia que são os públicos. Ora o que acontece muitas vezes em Portugal (e quem tem trabalhado nisto sabe muito melhor do que eu) é que muitas vezes começa-se pelo fim: faz-se o cimento, faz-se o prédio, não se sabe quem é que lá vai, que projectos é que vão lá ser feitos, para que é que vai servir, mas serve porquê? Serve porque muitas vezes quem os manda construir, seja a nível central, mas sobretudo ao nível local, tem da cultura aquela visão que o Dr. Claudino referiu como um valor estratégico, que aqui é um valor puramente instrumental da cultura. A cultura paga isto a certo tipo de poder, que ainda por cima se permite dizer que gasta dinheiro com cultura fazendo ou mandando fazer construções, estando a desperdiçar dinheiro em nome da cultura, o que é uma dupla ofensa à cultura, como é evidente.
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