Intervenções iniciais




José Reis



Muito boa tarde a todos. É um imenso prazer estar aqui, nesta tarde e nesta sala, onde eu, como porventura muitos dos que aqui estão, aprendi muito em várias outras tardes como esta. Olhando para cada uma das caras que estão na plateia, devo dizer, sem nenhuma nostalgia, que esta tarde me lembra, de facto, muitas dessas horas que aqui se passaram, ao longo de muitos anos, em momentos cheios de debates, de ideias, de aprendizagens.

Imaginarão que a razão porque estou nesta mesa está relacionada com o facto de eu ser um economista que se interessa por questões de desenvolvimento territorial e, mais precisamente, sobretudo nos últimos tempos, pelo desenvolvimento urbano, pelo desenvolvimento das cidades, pelos projectos de cidade. Isso tornou-se, de resto, numa moda (e eu acho que é uma boa moda): muitos dos que se interessam por cultura e território têm concentrado os seus interesses nas cidades e na dimensão urbana da vida contemporânea. É, pois, por esta razão que pode fazer algum sentido que eu aqui esteja, uma vez que me permiti também traduzir o título deste debate em duas palavras apenas: “cidades” e “cultura”.

Vou procurar fazer duas perguntas e procurar responder-lhes: por que é que cidades e cultura se ligam? que sentido é que fará esta ligação? Complementarmente, discutirei se as perguntas fazem um sentido específico, particular, em Coimbra. A resposta terá, porventura, uma forma esquemática e, eventualmente, académica. Se cair neste última característica, isso não ficará muito mal, visto que estamos numa casa que tem esta palavra no seu nome...

A primeira pergunta. Por que é que estas duas coisas – cidade e cultura – se ligam? Eu julgo que pode haver três respostas para esta pergunta.

A primeira consiste em dizer que, de facto, as actividades culturais se aglomeram em meio urbano. Como acontece, de resto, com muitas outras actividades – é isso mesmo que faz as cidades. Por isso, por estarem aí aglomeradas, por ser esse o meio onde elas se localizam, onde estão instituições culturais, agentes culturais, onde o sector cultural tem a sua localização, geram-se problemas específicos que é preciso regular. Até porque o sector tem entre as suas especificidades o facto de os agentes que o dinamizam e os produtos que oferece terem uma relação indirecta e difícil, quer com o mercado, quer com o Estado, e, além disso, tem uma idiossincrasia própria. Neste sentido, para as actividades urbanas e para a política urbana, colocar as coisas assim significa sobretudo identificar um problema: há nas cidades um problema que é preciso resolver e que advém desta especial localização das actividades culturais em meio urbano.

Uma outra possível resposta é constatar que há uma relação historicamente profunda – mais do que apenas “locacional” – entre o próprio desenvolvimento urbano e o desenvolvimento das actividades culturais. As hierarquias urbanas (metrópoles, grandes cidades, cidades médias) têm de certa maneira a ver com hierarquias culturais, isto é, é nas grandes metrópoles que estão as grandes formas culturais, é nas cidades grandes que estão outras formas culturais e por aí fora. Teríamos aqui, afinal, não tanto um problema, mas uma contingência. Historicamente as duas coisas estão relacionadas e, portanto, o desenvolvimento urbano faria bem em aproveitar essa contingência e tratá-la no âmbito urbano.

Eu creio que há, no entanto, ainda uma terceira resposta, que consiste em dizer que nestes tempos relativamente indistintos que nós vamos vivendo (em que verdadeiramente não sabemos bem onde é que está a estrutura das nossas economias, das nossas cidades, das nossas vidas, em que tanta coisa está em desconstrução), há claramente, mesmo que nós não saibamos ainda bem como, actividades emergentes. Ora, justamente entre aquilo que é emergente, entre aquilo em que importa concentrar a atenção, conta-se aquilo que alguns chamam as indústrias criativas, contam-se as actividades performativas. Cada vez mais se pode afirmar (há boa teoria nesse sentido) que estas indústrias culturais, estas actividades, estas instituições e estes actores são uma fonte de conhecimento, de capacitação das cidades, de criação de emprego. A prova de que assim é existe, e é cada vez mais clara. Pode mesmo fazer-se com relativa facilidade uma correlação entre a existência desses sectores emergentes de natureza cultural e as próprias formas, as próprias potencialidades, de desenvolvimento das cidades.

Se assim é, teríamos aqui então três respostas: há um problema, por um lado, há uma contingência, por outro, mas haverá também uma solução. Talvez a resposta à pergunta inicial deva conter estas três respostas, deva ser uma mistura destas três respostas. Mas é claro, como é evidente até pelos nomes que lhes estou a dar, que elas são, em grande parte, respostas diferentes. Todos sabemos que é comum encontrar quem só veja o problema e é até comum encontrarmos quem só crie problemas, na maneira como lida com este sector. Julgo, por exemplo, que a Câmara Municipal de Coimbra é um exemplo de um causador de problemas quando se trata de discutir assunto desta natureza – julgo que um causador de problemas é quem não se dá bem com a contradição, quem se incomoda com a diferença e quem, no fundo, ambiciona a pacatez. Tudo isto é incompatível com uma relação construtiva, positiva, ousada entre cultura e desenvolvimento urbano.

É também comum encontrarmos quem assuma a contingência e diga “já que temos este património acumulado na cidade (que obviamente a diferenciará sempre – Londres é diferente de Paris, Paris é diferente de Lisboa, as nossas cidades médias, deste ponto de vista, são diferentes umas das outras, há aí uma contingência, há um capital, um acumular de passado), então valorize-se esse passado”. Eu acho que já não é má resposta. Mas, evidentemente, a resposta completa é quando, perante os problemas dos sectores e a contingência da história, se possa repensar e valorizar esses problemas, entendendo que, afinal, a cultura também é uma solução, também é parte da solução no desenvolvimento urbano.

Nenhum de nós – muito menos eu – quer aqui dizer que o desenvolvimento urbano tem só uma solução. Tem várias, evidentemente, mas o essencial é sabermos se aquilo com que realmente lidamos é parte da solução ou é parte do problema. Eu julgo que uma cidade que disponha desse capital cultural, desses agentes, dessas instituições, dessa prática, está não apenas a valorizar melhor o seu passado mas também a encontrar boas soluções para o futuro. Porque me parece que podemos ligar esse tipo de actividades a tudo o que faz hoje parte das agendas comuns mais relevantes sobre desenvolvimento urbano. Se falássemos de economia do conhecimento, se falássemos de cultura, se falássemos de sociedades e de cidades competitivas, evidentemente que teríamos que dar valor à própria criação de valores (estou a repetir deliberadamente a mesma palavra), à criação de novas práticas e àquilo que é, afinal, a capacidade das pessoas em geral e não apenas dos produtores culturais.

Permito-me passar à minha segunda pergunta: há um sentido especial para a discussão desta relação entre cidades e culturas aqui em Coimbra? Eu acho que há, evidentemente. Admito que todos nós possamos convergir para esta ideia. Permitam-me uma breve divagação: pessoalmente, não tenho dúvidas que o papel e o lugar de Coimbra no sistema urbano nacional, ou, se quiserem de uma forma mais prosaica, o papel e o lugar de Coimbra no país, está sujeito, hoje em dia, a múltiplas ameaças. As políticas públicas são-lhe desfavoráveis, se não mesmo hostis; vivemos num contexto regional difícil, à escala do país (um contexto regional que tem, por exemplo, um escasso dinamismo demográfico – o facto de termos massa crítica demográfica é importante e nós lidamos aqui com esse problema). Finalmente, e para não atribuir as culpas apenas ao exterior, eu acho que a imagem que produzimos sobre nós próprios, as forças que reunimos e a imagem que projectamos da cidade e das nossas instituições não é, de facto, a melhor. Acho que vemos isso e, aí, temos que nos assumir a nós todos como parte do problema – vejo isso na Universidade, vejo isso nas instituições que governam politicamente a cidade, vejo isso, apesar de muitos aspectos activos e positivos que se podem reconhecer, noutras dinâmicas da cidade.

Acho, portanto, que quando lidamos com este assunto, com este tema – “cultura e cidades” – vale a pena pensar que nós, em Coimbra, não estamos, por múltiplas razões, na melhor das posições. Ainda que mais não fosse, ao menos por sentido de oportunidade e por valorização daquilo que nos rodeia e que aqui existe na malha da cidade, eu creio que não podemos desperdiçar as formas culturais que nos renovam capacidades. Designadamente, não podemos desperdiçar, se eu tiver razão, aquilo que é a tal fonte de solução, ligada às capacidades culturais instaladas.

Queria sublinhar este ponto: há um sentido especial para a relação entre cultura e desenvolvimento urbano em Coimbra. Há em Coimbra um acumulado de capitais, de pessoas, de instituições, de produtos que são quotidianamente criados e isso é importante. E, por outro lado, há urgência em fazer uso disso perante as ameaças que rodeiam a cidade. Ora, trata-se de transformar essas ameaças em desafios, desafios colocados por nós próprios.

Uma primeira forma de assumir o desafio seria dizer que, de facto, não há cidades competitivas sem contextos acolhedores, sem contextos motivadores, sem contextos criativos, sem contextos formadores, digamos assim. E, hoje (já tenho ouvido dizer isto a vários agentes activos desta cidade), Coimbra atrai. Atrai quadros, por exemplo, para as indústrias das tecnologias da informação e da informática, consolidou várias centenas de postos de trabalho em actividades relevantes, como as da engenharia informática, para dar um único exemplo. Coimbra tem capacidade para atrair quadros (e estará a fazê-lo) em diferentes actividades, para os quais o meio urbano em que vêm inserir-se, do ponto de vista das condições de vida, é importante. Eu até acho que se a nossa questão em Coimbra, por exemplo, for querer criar indústrias, querer criar emprego, então comecemos por pensar em ciência, em saúde, em educação, em lazer e em cultura. Esta seria, evidentemente, uma forma de aproveitar a oportunidade, uma forma funcionalista, oportunista até, de aproveitarmos aquilo que é o capital da cidade. Mas não tenho dúvidas: aquilo em que quisermos ser competitivos, aquilo que for uma estratégia competitiva de uma cidade (eu estou aqui a aderir, sem discussão, a este termo tão usado pelos meus colegas de profissão – competitividade, cidade competitiva), eu não tenho a menor dúvida que isso não se faz sem olhar para o meio à volta e sem olhar para os factores que fazem dele não apenas um meio acolhedor mas, justamente, um meio capaz de gerar outras formas de competição da cidade e outra capacidade competitiva.

Para além de a cultura contribuir para que a cidade seja um meio acolhedor (e por isso competitivo), a cultura é também, seguramente, um factor de criação de energia criativa. Esta energia criativa advém de ter actores colectivos, agentes colectivos com ela relacionados que estão de há muito formados – não é preciso formá-los, não é preciso criá-los, não é preciso inventá-los. Não é preciso, se o problema for esse, dar-lhes os tais subsídios, que criam pele de galinha a alguns. Se é preciso investir, então é sobretudo preciso investir no funcionamento, mais do que na criação, porque já os temos. E temos, portanto, essas capacidades, essa possibilidade de ser energia criativa e de a cultura, afinal, não ser só um sector receptáculo de apoios, mas, inversamente, ser um sector criador. Parece-me que não é difícil – eu estou apenas a formular, digamos assim, a tese – não é difícil fazer a demonstração de que a tese é fundamentada e de que a tese tem capacidade para se concretizar e desenvolver.

Terminando, aquilo que me parece em absoluto lapidar é (e sobre isso estaremos de certeza todos de acordo) é que Coimbra não pode desperdiçar o capital que tem nestes domínios. Eu admito que o esteja a fazer e provavelmente é por essa incomodidade que aqui nos reunimos.



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