Intervenções iniciais




José António Bandeirinha




Eu queria começar por agradecer o convite para vir a este debate. Falar sobre cidades é extremamente motivador, falar sobre Coimbra é duplamente motivador.

Num dos mais míticos antagonismos entre cidades, aquele que opõe a Babilónia a Jerusalém, que é vertido para a língua portuguesa de uma forma magistral por Camões, são referidas duas cidades como antagónicas. A Babilónia é a cidade existente, é aquela que nós conhecemos, é aquela sobre a qual exercemos uma crítica, por vezes dura, aquela que nos massacra, que esmaga o nosso quotidiano, que tem crime, que tem variadíssimas atrocidades e que nos faz sofrer. Jerusalém é a cidade prometida, é a cidade que nós projectamos, é a cidade que nós queremos, que todos nós ambicionamos.

Quando vivemos na Babilónia, sabemos que há uma Jerusalém, sabemos que há um sítio que nós queremos e que o podemos projectar. Pode ser vertido para a questão mítica, para ser noutra vida, depois da morte, etc., mas a verdade é que é uma alternativa. Por um lado, esta cidade que nós projectamos não se pode alhear da outra que nós conhecemos, porque a outra é que lhe confere escala, é que lhe confere termo de comparação: se não houvesse a Babilónia, nós não conseguíamos imaginar uma Jerusalém; se não houvesse a cidade onde vivemos, nós não conseguíamos projectar uma melhor. Por outro lado, esse projecto, essa ambição de transformar a cidade onde vivemos, faz parte do código genético da própria cidade. É, por assim dizer, o principal apanágio da cultura urbana, a transformação – a transformação para melhor, a evolução, aquilo que nós queremos fazer de melhor, apoiando-nos na crítica (na mais negativa e também, porque não, na mais positiva). É impensável falar sobre cultura urbana se não falarmos na transformação. Eu acredito que esta transformação pode ser física e, aqui, estou um bocadinho em desacordo com o Abílio quando fala na questão do cimento: acho que o cimento também pode ser um factor de transformação cultural. Muitas vezes é, tantas vezes o é. Outras vezes não, e eu percebo quando ele diz que não o é, percebo porque, na maior parte das vezes, até tem razão.

Assim como há outras matrizes que nós conotamos vulgarmente com a cultura rural, como a matriz do tempo, a matriz meteorológica, o ciclo dos equinócios, o ciclo dos solstícios, as coisas mais relacionadas com as culturas agrícolas, mais relacionadas com a manualidade do trabalho, assim como a chamada cultura rural tem essas matrizes, a cultura urbana tem esta matriz – a matriz da transformação, a matriz da evolução permanente, da crítica e da construção de novas coisas. Nós temos que estar sempre a construir novas coisas e para as construirmos bem temos que as projectar com racionalidade, temos que antever coisas, temos que saber prever como é que vai ser o futuro, temos que saber qual é o papel das actividades humanas, entre as quais a cultura, nesse ciclo de transformação, temos de fazer projecto.

A cultura, como um dos motores (para usar também expressões mais correntes) de desenvolvimento urbano não é novidade, obviamente. Todos nós sabemos que ela pode sê-lo. Não é de maneira nenhuma um empecilho, é um dos factores mais importantes nesse ciclo de competitividade entre cidades de que falava o José Reis. Não é preciso ir muito longe na nossa Europa para percebermos isso: em Espanha já o perceberam há muito tempo e a rede de cidades espanhola, que é organizada, já o percebeu e está a tentar desenvolvê-la. E nunca foi por oposição, ou seja, as mesmas pessoas que enchem as praças de touros e que enchem os campos de futebol estão nas grandes salas de ópera, estão nos grandes centros de arte contemporânea, enchem-nos na mesma. Não é “ou”, é “e” – estão também lá. Porque há essa oferta e porque sabem revertê-la a favor disso. Não há culturas de oposição. As pessoas não são “aquilo” e portanto “são aquilo, paciência, gostam mais de ir à igreja do que ir à ópera” ou “gostam mais de ir ao futebol do que ir ao hóquei em patins”, não. Não é “ou”, é “e”. As pessoas vão a tudo. Se houver oferta, as pessoas vão a tudo. As pessoas escolhem, qualificam a oferta. É preciso, também, é saber investir com qualidade nessa oferta e, sobretudo, não esbanjar o investimento.

Nos diversos ciclos de organização política do país, há um determinado investimento que depois é esbanjado. Não tanto em Coimbra, porque também não houve tanto investimento, mas no Porto, isso é fatal e é muito complicado, aí sim sob o ponto de vista económico. O investimento que foi feito e a criação de públicos que foi gerada (ao longo de uma sequência que não corresponde só a Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, corresponde a alguns anos antes e alguns anos depois), foram completamente esbanjados por questões que, sob o ponto de vista da economia pura, são questões graves – porque se esbanjou um investimento e porque esses públicos estavam criados e estavam, de certa maneira, consolidados.

Eu acho que é um dado assente, que não é novidade para ninguém: a cultura é um motor de desenvolvimento económico, a cultura é um dos factores mais importantes de competitividade nas cidades médias. Acho é que, em Portugal, também por dificuldades de articulação de investimentos, ainda não foi percebido que a cultura não pode ser um investimento isolado, ou, pelo menos, não é um investimento rentável se for vista como um dos nichos da actividade política – “está ali o tipo da cultura, vamos lá ver o que é que ele faz...”. Não é, de maneira nenhuma. Tem que ser integrado, tem que ser articulado com todas as outras dinâmicas da actividade política autárquica, universitária, o que quer que seja. Em determinadas dinâmicas de investimento (eu diria aquela à qual estou mais ligado e que conheço melhor, mas existe em muitas outras), a cultura é um factor fundamental, mesmo não sendo um investimento directamente vocacionado para a actividade cultural. Por exemplo, a construção. Nós não podemos estar a fazer um grande investimento em actividade cultural abstracta – produção de concertos, produção de espectáculos, exposições – e depois esse investimento ser mal-baratado porque as condições de acolhimento desses espectáculos não são boas. Tem que haver aqui, neste caso concreto, mas há outros, repito, não é exclusivo, tem que haver uma actividade concertada.

A condição de nós construirmos esta cidade de que o José Reis falava, esta cidade que é agradável, que é competitiva, que é atractiva, que consegue cativar habitantes, a construção dessa cidade já não é só, como nos célebres tempos do “boom” demográfico em cidades como Braga, por exemplo, já não é só a habitação barata. Já passámos essa fase. É também a construção articulada de todas estas coisas. E, em muitas destas dinâmicas, a actividade cultural é fundamental, eu diria que é central, quase. O investimento cultural não é, portanto, um investimento isolado num determinado nicho de uns intelectuais que conhecem umas coisas mais do que os outros, é um investimento concertado, que tem que entrar bem no eixo da actividade de uma determinada instituição política.

Eu também gostaria de falar um pouco sobre Coimbra. Acho que é extremamente importante centrar o debate sobre Coimbra, usar o debate para falar de Coimbra. Na maior parte das vezes, eu assisto é ao contrário: usar Coimbra para fortalecer debates. Quando nós usamos o debate para centralizar a discussão em Coimbra, é a coisa mais importante que se pode fazer. Muitas vezes, demasiadas vezes, Coimbra é usada para servir o debate político e eu acho que já é tempo de invertermos esse ciclo, temos de passar a usar a política para fortalecer Coimbra. Discutir também é fortalecer, é criticar, é fazer aquilo que eu dizia no início: é projectar uma outra cidade.

Coimbra está numa posição extremamente difícil. Por um lado, sob o ponto de vista endógeno, há uma espécie de fatalidade, há uma espécie de acomodação, de dizer “está tudo assim, isto não pode ser alterado, as coisas são assim mesmo”. Por outro lado, a verdade é que as condições gerais, as condições exteriores à cidade em si, sobretudo depois da democracia, têm sido altamente desfavoráveis sob todos os pontos de vista e continuam a sê-lo, cada vez mais. O peso da bi-polarização tem vindo a ser crescente. A bi-polarização metropolitana, digam o que disserem, tem sido sempre muito protegida, tem gozado, de uma forma escandalosa, de um proteccionismo interventivo por parte dos sucessivos governos, por parte do Estado. Ninguém questiona nenhum tipo de equipamento, seja cultural seja o que for, que se coloque nas metrópoles – está mais ou menos instituído. Questionam-se todos e mais alguns aqueles que se situam fora das metrópoles e, portanto, é uma desgraça de cada vez que há debates sobre uma rede de equipamentos.

Por outro lado, também sob esse ponto de vista, a rede de cidades em Portugal não existe realmente. Nós falamos muito de “rede urbana”. O que é a “rede urbana”? Não está definida. Era preciso coragem para a definir e não tem havido essa coragem, não tem havido coragem para dizer o que é a rede urbana em Portugal, o que são as cidades médias. Cada vez que se fala em cidades médias, aparecem três ou quatro, que são quase inevitáveis, e depois aparece um imenso rol de localidades, de acordo com as capacidades de influência, depois nunca mais pára – onde é que isto pára? Cada vez que se fala em equipamentos distribuídos pelas cidades, é a mesma coisa. Se nós olharmos para Espanha, aqui ao lado, essa questão, de uma forma mais artificial ou menos artificial, está resolvida há décadas. A divisão administrativa tem servido sempre para fortalecer estas pequenas centralidades, articulando-as umas com as outras, criando algumas especificidades em cada uma delas e as cidades são muito mais florescentes do que em Portugal. Em Portugal há uma tendência desesperante, diria eu, para considerar duas grandes metrópoles globalizadas e mundiais e depois o resto é território tábua-rasa de sub-urbanidade. Coimbra está no meio disto. É um bocado difícil. De cada vez que discutimos Coimbra temos que ter isto em linha de conta.

Queria acabar com uma alusão bastante positiva a esta casa, que me emociona sempre que cá venho (e venho cá muitas vezes, praticamente todas as semanas, às vezes várias vezes por semana), porque cresci com ela e vi muita actividade cultural e não só – actividade política, no sentido aristotélico do termo, naquele do qual estávamos a falar há pouco. Acho que é um belíssimo exemplo e um belíssimo mote para este debate, porque se foi mantendo, a muito custo, mas mantém-se sempre com uma programação que transborda dignidade e qualidade. Estão aqui nesta mesa dois dos responsáveis (na plateia estão outros tantos) por essa manutenção ao longo dos tempos, o actual responsável, embora não esteja presente, deu sequência e ampliou esse trabalho. É uma casa da Universidade, mas continua a ser uma casa de cultura, onde nós ainda nunca tivemos de fazer nenhuma manifestação à porta para impedir que a fechassem e já houve muitos bons sítios onde isso foi feito. Eu saúdo, e acho que é muito auspicioso, o facto de estarmos aqui no Teatro Académico de Gil Vicente.



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