Intervenções iniciais


CIDADE, ARTE E POLÍTICA:
VALOR ESTRATÉGICO DA CULTURA


António Pedro Pita
Director Regional da Cultura do Centro



É possível que pensar as relações entre "cidade" e "cultura" seja, em si mesmo, um exercício de reflexão sobre as metamorfoses da cultura.

Porque também as cidades mudam? Certamente. Mas, antes de mais, porque a cultura é constituinte da organização da cidade. Ou, dito por outras palavras: sendo "uma organização destinada a maximizar a interacção social", implicando uma "necessidade de especialização e diversificação do corpo social", ligada a um aumento da divisão de trabalho e à necessidade de comunicar e de trocar mercadorias e ideias", a cidade originou um "modo de vida" específico ou uma "cultura" própria. O traço mais vivo desta cultura é talvez ser um espaço de confluência das longamente separadas "cultura do povo" e "cultura de elite".

Não pretendo sequer resumir a considerável produção que entre nós, o tema das relações entre "cidade" e "cultura" já suscitou. Os textos de, entre outros, Idalina Conde, Claudino Ferreira, João Teixeira Lopes, Alexandre Melo, José Madureira Pinto, António Pinto Ribeiro, Maria de Lurdes Lima dos Santos e Augusto Santos Silva, sem esquecer Carlos Fortuna e João Peixoto, a cujos textos fui buscar algumas noções precedentes, são esclarecedores, para além da complexidade, da implicação mútua entre "cidade" e "cultura".

É útil determo-nos um pouco nesta implicação mútua e averiguar o ponto em que o próprio da cultura e o próprio da cidade se encontram ou coincidem, para além de todas as proximidades simplesmente alusivas ou pretextuais.

Num texto a vários títulos sugestivo, escrito em colaboração com Augusto Santos Silva, Carlos Fortuna observa que a cultura, nas suas mais diversas concepções e manifestações, tem uma espacialidade própria: "num sentido físico mais restrito, a espacialidade da cultura diz respeito aos lugares e equipamentos especializados, sejam eles teatros, auditórios, museus ou galerias"; de um modo geral, é o conceito que pensa "as condições em que a cultura surge transformada em ingrediente de renovação potencial da vida social nas sociedades contemporâneas".

"Ingrediente de renovação potencial da vida social nas sociedades contemporâneas": repito. As nossas cidades não são só heterogéneas: são compostas por fragmentos de uma totalidade mítica, dos quais alguns teóricos extraíram "o anonimato, a superficialidade e a transitoriedade" das existências e das relações.

Ora, não há uma cultura que confira homogeneidade ao que é heterogéneo, que una o que está separado. A cultura não reconcilia o todo da cidade consigo próprio - porque a cidade não é unificável e, na cidade, os fragmentos que a cidade é originam a cultura de que se faz a cultura urbana.

Reconhecer estas pluralidades, reconhecer que elas não são redutíveis a dualidades simplificadoras (amador/profissional; popular/elite; local/global) é um imperativo político - subjacente, aliás, quer às estratégias de fortalecimento da malha cultural quer aos planos de qualificação dos equipamentos.

A vitalidade do espaço urbano depende desta qualificação e daquele fortalecimento: por um lado, a geografia dos equipamentos, os requisitos técnicos, o rigor arquitectónico, a competência de gestão e as condições de atractividade de públicos; por outro, a suficiência de criadores, entre a sedimentação e a aventura, a escola e a transgressão, quando trabalham na velocidade do povo actual e quando trabalham na velocidade do povo virtual - alimentam a circulação de saberes e de afectos, intensificam heterogeneidades, geram a cultura como devir.

Percebemos que a cultura mudou de configuração: já não é a soma erudita de conhecimentos nem a simples mediação da consciência de si e do mundo nem a outra que se opõe à cultura científica (à C. P. Snow) nem o universo onde Jean Dubutfet asfixiava. Nem, finalmente, no imaginário cartográfico que por vezes adoptamos, uma região ao lado de outras regiões.

Afirmar a centralidade estratégica da cultura significa que é nela que reside o elemento fundamental capaz de promover a "renovação potencial da vida social nas sociedades contemporâneas": a tensão entre socialização e criatividade ou, em outra terminologia, o devir anónimo da invenção.

Por conseguinte, reivindicar a centralidade estratégica da cultura não é querer generalizar coisas do espírito, formais e abstractas. É instaurar na permeabilidade do espaço urbano as condições de circulação de tudo o que pode transformar os corpos, os olhares e os afectos. É afirmar que o próprio da cultura, digamos: o seu núcleo substancial (a tensão "socialização" / "criatividade"), não é uma região ao lado de outras regiões porque é coextensivo ao conjunto de regiões e produz efeitos específicos na relação com cada uma delas. E é mostrar como é que em áreas chave de uma estratégia de desenvolvimento – educação, economia, coesão social – o núcleo substancial da cultura é decisivo.

No entanto, esta reconfiguração da cultura não é simples nem óbvia nem linear. Esse processo de reconfiguração, congenitamente dependente da secularização, democratização e massificação das sociedades contemporâneas e do espaço urbano, entre outras consequências, institui a mercantilização generalizada das trocas culturais e cria as condições de emergência das "indústrias criativas".

É impossível ler a afirmação de que a cultura se tornou geradora de mais valia económica e de que o volume desta mais valia é relevante no PIB sem esse contexto e a consequente deslocação de fronteiras identificadoras do que seja, hoje, "o cultural".

Por exemplo: sabemos que a concepção, produção e comercialização de jogos vídeo é uma das mais sólidas indústrias criativas e em grande parte responsável pela importância daquela mais valia.

É inevitável perguntar se a reconfiguração da cultura vai no sentido da generalização do divertimento de curto alcance e da multiplicação de fortes emoções passageiras ou se este é apenas o contraponto, inevitável, na longa e profunda mutação nas modalidades de acesso de cada vez mais pessoas a cada vez mais cultura.

A observação de Carlos Fortuna é pertinente: "chegando mais longe e a mais gente, a produção da media culture, por mais uniforme que seja, em cada conjuntura e sector, defronta-se com a enorme variedade cultural dos grupos sociais que vão tendo acesso a ela. Numa fórmula expedita proposta (...) por Diana Crane, pode dizer-se que ao impulso da homogeneização na oferta contrapõe-se um impulso de heterogeneização na procura". Não desvalorizamos, porém, o facto de que seja na consequência económica directa que se situa a viragem reconfiguradora da cultura anunciada na génese e expansão das "indústrias criativas".

Que podemos definir assim: "actividades que têm a sua origem na criatividade, competências e talento individual, com potencial para a criação de trabalho e riqueza através da geração e exploração da propriedade intelectual" ou "as indústrias culturais têm por base indivíduos com capacidades criativas e artísticas, em aliança com gestores profissionais na área tecnológica, que fazem produtos vendáveis e cujo valor económico reside na suas propriedades culturais (ou intelectuais)".

Suponho que é necessário não ler estas noções demasiado depressa. Pelo menos, não tão rapidamente que nos impeça de reconhecer que o modelo, confesso ou inconfesso, da criatividade é a arte.

Permitam-me que defina a arte como criatividade intransitiva. Na concepção de que somos herdeiros, a arte é por excelência a prática criativa, paradigma ou referência exemplar de o que seja a criatividade, independentemente das condições e das consequências.

Daí a importância de que reveste a sustentabilidade dos focos de criação artística e a existência de um espaço público vivo e dinâmico. Não são dois factos. São elementos constituintes de um movimento em que a arte devém vida e as vidas se transformam - por isso mesmo, um movimento genuinamente social e político.

Percebemos então a imensa responsabilidade de uma política de cultura coerente e consequente e percebemos também como é delicada a tarefa de programar.

"O que é programar?"- perguntou em tempos António Pinto Ribeiro. E respondeu: "é uma actividade aparentemente muito simples: provocar o encontro entre os criadores e os seus instrumentos de uso técnico e simbólico: as suas faculdades, os seus conhecimentos, as suas histórias, os seus instrumentos técnicos e musicais, os seus ensaios sobre o mundo, as suas técnicas de educação, as suas memórias pessoais e colectivas. É, portanto, simples. Basta ter um espaço - ou espaços - temporário ou permanente, alguns recursos, e provocar o encontro entre pessoas: umas que são quotidianamente criadoras, outras que esperam encontrá-las e às suas criações".

Provocar o encontro. Sucede que os encontros podem levar-nos para o melhor ou para o pior de nós. E a tarefa de uma política de cultura não é fazer por nós as nossas escolhas, não é satisfazer clientelas, não é procurar êxitos fáceis, não é esquivar a exaltação e o risco.

Se a cultura precisa de uma política é para resistir às múltiplas hipóteses de erosão: à erosão do espectáculo, à erosão da demagogia e do populismo (que degrada o popular), à erosão da reafirmação de identidades (contra a experimentação, o devir das diferenças, o cosmopolitismo).

Nós precisamos da cultura para nos descobrirmos como possibilidades e desenhar um rosto improvável em que, outros, nos reconheçamos.



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(lida por João Maria André):