Insatisfação

A apresentação de um texto muito crítico ao desinvestimento cultural na cidade deu expressão à "insatisfação" de muitos cidadãos, à semelhança do que já acontecera em 2005.

"Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura!". O documento subscrito já por quase centena e meia de cidadãos das mais diversas áreas de actividade – das artes à vida académica –, ontem apresentado publicamente no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), tem como objectivo "dar visibilidade à insatisfação", mas também abrir um ciclo novo na vida da cidade: a partir de agora um blog [www.amigosdacultura2008.blogspot.com] recolhe opiniões e assinaturas de outros críticos com o estado da cultura em Coimbra e um debate agendado para 20 de Fevereiro, no TAGV, deverá reunir contribuições para a mudança necessária.

Com José Reis, Manuel Portela e João Maria André a apresentarem o documento e as razões para a criação do movimento de contestação à política autárquica – ou à falta dela, como resulta claro do documento e das opiniões ontem expressas –, ficou aberto um processo que os
organizadores da iniciativa pretendem venha a dar frutos, num futuro que se pretende o mais próximo possível.

Para José Reis, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e habitual interveniente na vida cívica e cultural da cidade, "este documento é, de facto, o regresso a um momento semelhante ocorrido há dois anos", quando 60 personalidades se manifestaram num
documento igualmente crítico da política cultural autárquica e do "desrespeito" havido para algumas entidades com um papel de relevo na cultura coimbrã.

"Cidade amarfanhada"

No entanto, "passados dois anos, Coimbra continua a ocupar um lugar muito difícil a nível nacional", apesar de ser "das poucas cidades com estruturas capazes e um importante capital" de actividade e dinâmica.

Tal como diz o documento – assinado, entre muitas outras personalidades, pelos três professores da Universidade de Coimbra que ontem apresentaram o movimento, mas também por Abílio Hernandez, Albano da Silva Pereira, Alexandre Alves Costa, António Arnaut, António Dias Figueiredo, António Marinho Pinto, Boaventura de Sousa Santos, JP Simões, Gomes Canotilho, Jorge Alarcão, Teresa Portugal, Manuel Rocha ou Luís Januário –, "dois anos depois, as piores expectativas foram ultrapassadas": Coimbra "é hoje uma cidade amarfanhada do ponto de vista cultural, que só não se tornou absolutamente insignificante a nível nacional graças à actividade que, no limiar da sobrevivência, os poucos agentes culturais que ainda restam conseguem ir desenvolvendo".

Mas o documento avança ainda mais na crítica à autarquia – que acusa de ter diminuido em 80 por cento o orçamento para a cultura relativamente a 2004 –, dizendo que "a Câmara Municipal já não se limita a não apoiar devidamente a actividade cultural que aqui é
feita; assume-se, pelo contrário, como um elemento dificultador e tendencialmente destruidor do potencial de criação artística que a cidade possui e que é uma das suas principais mais-valias".

Reclamando "respeito", como fez questão de sublinhar João Maria André na apresentação, as interrogações sucedem-se depois: "Que tipo de política cultural se pode esperar de um executivo que insiste em amesquinhar publicamente os agentes culturais da cidade, denegrindo a actividade que desenvolvem...?".

"Documento menor, de muito pouca qualidade"

Rejeitando frontalmente as acusações de que é alvo no documento ontem divulgado, condensadas em dois pontos fundamentais – a inexistência de uma política cultural autárquica e a diminuição em 80 por cento (relativa a 2004) do orçamento para a cultura na cidade –, o
presidente da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) considerou a declaração subscrita por mais de uma centena de personalidades na mais diversas áreas "um documento menor, de muito pouca qualidade em termos culturais".

Em declarações ao DIÁRIO AS BEIRAS, Carlos Encarnação disse "encaixar com bonomia estas atitudes", uma vez que elas se "encontram sempre imbuídas de um desejo manifesto de expressar insatisfação", havendo, no entanto, que ter em conta a "tensão dialéctica entre aquilo que se quer e aquilo que se pode ter...". De resto, ironizou Carlos Encarnação, "considero-me até muito melhor tratado do que a senhora ministra da Cultura, que tem muito mais subscritores a pedir a sua demissão".

Depois, em jeito de balanço de um período que, para Carlos Encarnação, "foi dos que mais investimento trouxe à cidade no campo cultural", contrariando as afirmações dos subscritores do documento que, ainda de acordo com o presidente da CMC, "laboram num erro manifesto", o autarca enumerou as realizações dos seus seis anos de mandato: a Oficina Municipal do Teatro, o Teatro da Cerca de S. Bernardo, a aquisição e abertura da Casa Miguel Torga, a aquisição da casa de João José Cochofel para Casa da Escrita – "já para não falar no Concento de S. Francisco" –, num investimento de quatro milhões e 700 mil euros.

Mas Encarnação fez ainda questão de recordar o milhão de euros que a autarquia "transferiu" para a Fundação Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, bem como o "aumento substancial do orçamento cultural" para 2008, uma vez que irá proceder-se a uma "intervenção" na Casa da Cultura e à "ampliação" da Casa Miguel Torga.

Lídia Pereira, Diário As Beiras, 24/01/08