A chantagem dos subsídios

Catarina Martins
(Jornal de Notícias, 19 de Abril de 2007)



O debate sobre política cultural promovido pelo Conselho da Cidade na passada segunda-feira teve o mérito de sujeitar o Presidente da Câmara ao confronto directo com os agentes culturais da cidade, suscitando uma discussão que Carlos Encarnação tem evitado, por motivos que esta iniciativa tornou absolutamente óbvios. É evidente que o discurso demagógico com que o presidente da autarquia abriu o debate não resistiria ao confronto com a realidade vivida pelos protagonistas da cultura e os cidadãos presentes na sala. De facto, não basta Encarnação afirmar que criou infra-estruturas para a criação e fruição artística, quando estas faltam, são mal qualificadas, abandonadas, ou carecem de apoio ao funcionamento. Não basta Encarnação afirmar que apoia os agentes culturais, quando o desinvestimento é crescente e os protocolos não são cumpridos. E cedo ficou demonstrado que a defesa, por parte de Encarnação, de uma articulação entre a autarquia e os protagonistas da cultura, na qual caberia a estes as iniciativas e à câmara a fixação de regras e a criação de condições (o que é correcto), não passava de uma mistificadora tentativa de desresponsabilização. Confrontado com a própria recusa em fixar regras de acesso a apoios e com a discricionariedade com que exerce esta competência, transformando o subsídio à actividade cultural numa arma de chantagem, de censura e de controlo, Encarnação não encontrou outros argumentos senão o insulto, e a reafirmação, sem peias, de uma concepção de cultura como instrumento manipulável por um poder autoritário no sentido da sua legitimação. Isto é, Encarnação está disposto a tolerar os agentes culturais, desde que estes lhe prestem homenagem, sejam submissos, ou desde que se mantenham no estado de menoridade a que pretende confinar as iniciativas amadoras (ficou claro que reserva para elas um papel subalterno, sem direito sequer à formação).

Depois deste debate, Encarnação não pode mais esconder que quer governar a cultura de Coimbra sem os respectivos protagonistas – o que significa matar gradualmente este sector. A relação de confiança entre a autarquia e os agentes culturais, indispensável à dinamização da cultura, recebeu agora um golpe do qual muito dificilmente recuperará. Isto significa que, enquanto durar o mandato de Encarnação, fazer cultura em Coimbra será cada vez mais uma tarefa de coragem e resistência, o que não deixará de provocar mais baixas no tecido cultural da cidade e o aumento do êxodo do potencial criativo que aqui se gera.

P.S. Da manga, o Presidente da Câmara retirou apenas um trunfo: a criação de uma pousada em Santa Clara-a-Nova, viabilizada pelas alterações ao estatuto de protecção dos imóveis classificados no Rossio de Santa Clara e sua encosta. Trata-se, possivelmente, de um presente envenenado: embora estas alterações apresentem aspectos positivos pela articulação proporcionada, suscitam sérias reservas relativamente à transformação de cerca de metade da cerca do convento (10 ha) em área onde poderá surgir construção, ao contrário do que hoje acontece. No actual PDM toda essa área é definida como equipamento, mas a revisão desse instrumento está em curso e o futuro da unidade morfológica cerca/convento poderá ser irremediavelmente destruída por mais uma decisão que abre as portas ao betão.