Carlos Fiolhais
Professor da Universidade de Coimbra e Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Se há uma área em que Coimbra é particularmente forte é a área dos livros e das bibliotecas e arquivos. Basta pensar na Biblioteca Joanina, uma das mais belas do mundo, repleta com quase cem mil livros antigos. Mas pode-se pensar que o total de volumes das cerca de 90 bibliotecas da Universidade de Coimbra é de mais de dois milhões, com cerca de metade localizados na Biblioteca Geral, um vasto e rico património que só é comparável ao da Biblioteca Nacional. Pode-se ainda pensar na Biblioteca Municipal, com os seus cerca seiscentos mil volumes, que oferece serviços especiais, como os de fonoteca, ludoteca, etc. Assim, o total de volumes de uma grande biblioteca virtual da Universidade e da cidade é de cerca de três milhões de volumes. É fácil por um protocolo de colaboração garantir condições de boa colaboração e sinergia sem discutir questões que são aliás indiscutíveis de propriedade, assim como de localização física das bibliotecas especializadas. Alguns dos conteúdos desses fundos são únicos no país e no mundo. Outros são repetidos, o que deveria facilitar a sua circulação. Mas, além das bibliotecas, pode-se ainda pensar, por se tratar de uma mais-valia próxima, nos valiosos Arquivos da Universidade e Municipal. Para não falar também das editoras e imprensas da cidade e região. E das publicações periódicas, com enorme tradição. E das livrarias e antiquários. E das artes gráficas, como a tipografia e o design. E dos cursos em ciências da informação e da documentação, que em Coimbra têm história.
A Biblioteca Joanina da Universidade está construída sobre uma prisão medieval. Esse espaço, que serviu outrora como prisão académica, está hoje aberto ao público. Os livros deixaram, porém, a certa altura de caber na Biblioteca Joanina. Já fez 50 anos o "novo" edifício da Biblioteca Geral, em frente à Faculdade de Letras. Esta Biblioteca foi construída sobre a antiga Faculdade de Letras, que por sua vez se ergueu sobre o Colégio de São Paulo Apóstolo. E ainda bem que é assim: o novo tem sempre de subir para os ombros do velho, como um filho que sobe aos ombros do pai para ver mais longe.
Agora está na hora de o novo subir mais uma vez para os ombros do velho. A Biblioteca Geral, a segunda biblioteca do país, está a rebentar pelas costuras. Não cabe lá praticamente mais nada, repleta como está pelas permanentes entregas do depósito legal e por numerosas incorporações e doações (uma das mais importantes foi a da Biblioteca e Arquivo do Instituto de Coimbra, a academia que existiu em Coimbra). Também a Biblioteca Municipal, que tem desempenhado um notável papel na leitura pública (foi a minha biblioteca na juventude e muito lhe devo!) está hoje limitada num sítio onde, por também receber depósito legal, tem dificuldade em caber: a Casa da Cultura, uma casa datada que tem hoje reduzida funcionalidade.
Para onde ir? Pois o centenário mas elegante edifício da Cadeia Penitenciária de Coimbra, mesmo às portas da Universidade e quase colado à Casa da Cultura entre o Jardim de Santa Cruz e o Jardim Botânico, vai ficar devoluto com a transferência da cadeia para instalações novas nos arredores de Coimbra. Deve ser a Casa do Conhecimento de que Coimbra - a Cidade do Conhecimento - precisa. Esta ideia, que propus publicamente há já alguns anos, foi acarinhada pelo Reitor da Universidade de Coimbra e, de início, pelo Presidente da Câmara Municipal. Num processo de sinergia da Universidade com a Câmara Municipal, a cidade poderá assim vir a ter a maior biblioteca do país, uma biblioteca com dimensão nacional e internacional, num espaço com interior moderno e equipada com as mais modernas tecnologias. Tal como outrora na Biblioteca Joanina, a liberdade poderá crescer onde não existia. Não é razoável que haja em Coimbra, distanciados por escassas centenas de metros, dois sítios onde é recebido e tratado o mesmo depósito legal. De resto, está prevista a redução em breve das entregas desse depósito pela Biblioteca Nacional, passando a ficar apenas num sítio em Coimbra.
O espaço da Penitenciária é muito amplo (e há muito espaço por baixo para guardar originais depois de devidamente tratados e digitalizados). Portanto, a Casa do Conhecimento poderá também ser um espaço para o Arquivo da Universidade (que também é Distrital) e para o Arquivo Municipal, actualmente também sem espaços suficientes e a funcionar em condições abaixo do desejável. E, derrubados os muros da prisão, há espaço para criar uma faixa verde que una os referidos jardins, fazendo com que a cidade seja atravessada, da Praça da República à Quinta das Lágrimas (passando pelo Jardim Botânico e pelo Parque Verde), por um extenso parque que fará as delícias dos locais e dos visitantes.
Muita gente tem acarinhado esta ideia, que reúne duas coisas que têm faltado a Coimbra no domínio cultural - visão e ambição. Algumas vozes, embora reconhecendo a necessidade de espaço para as bibliotecas e da sua frutuosa colaboração, e a necessidade de conservar o espaço histórico do cárcere, defendem que o edifício da prisão deve ter outra finalidade e que a Casa do Conhecimento devia ser instalada noutro lado, como o Quartel de Santana, ou mesmo construída de raiz, quiçá numa zona da periferia que permita "fazer cidade". Pode ser até que tenham razão, mas convém quanto antes discutir este assunto abertamente e realizar os necessários estudos técnicos.
O certo é que a ideia na prática não tem nos últimos tempos avançado, devido em boa parte à situação de paralisia em que se encontra a Câmara Municipal no domínio cultural. Não, não é só nas artes que ela está parada. É também nas letras, no que diz respeito à escrita e à leitura. Chega a ser confrangedor não haver uma única ideia cultural do lado da Câmara que mobilize os cidadãos. E é tambem confrangedor que a Câmara, não tendo ideias próprias, não ouça as ideias alheias. Pela minha parte, da única vez em que a cidade me chamou para discutir a Casa do Conhecimento, fiquei desconsolado com o baixo nível da discussão: nem sequer havia um arquitecto para o projecto (a autarquia só tinha um esboco feito por um seu desenhador!) e nem sequer foram estudados projectos internacionais do mesmo tipo. Esta Câmara, na qual de início depositei esperanças, é surda e muda em tudo o que à cultura diz respeito.
E porque não me calo? E porque é que, felizmente, outros cidadãos de Coimbra, amigos da cultura, não se calam? Porque Coimbra e o país merecem mais e merecem melhor. A Câmara Municipal tem adoptado, no plano cultural, uma atitude miserabilista, queixando-se dos desfavores do governo quando se deveria queixar em primeiro lugar e sobretudo de si própria. Não tem mostrado nem visão nem ambição! O governo não pode apoiar planos que não existem e o plano da Casa do Conhecimento, na prática, não existe para o governo. Aparentemente não existe sequer para a Câmara, em contradição com as afirmações iniciais do seu responsável. Também não tem, em alternativa, qualquer outro plano coerente. Em contraste, outras cidades têm grandes planos de investimento cultural e obtêm consideráveis apoios para eles. Basta olhar para os exemplos da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, da autoria do arquitecto Siza Vieira, ou da Biblioteca Eduardo Lourenço, na Guarda, esta ainda por inaugurar.
Diz a Câmara que não tem Casa do Conhecimento, mas tem uma ou vai ter uma Casa da Escrita. Gaba-se de pouca coisa e mais valia, neste caso, permanecer calada. A dita Casa da Escrita é uma coisa pequena, quase de vão-de-escada: pouca coisa lá vai caber. Trata-se da casa de João José Cochofel, um escritor que, com todo o respeito que merece, não é um grande nome nacional e muito menos internacional. E a Câmara gaba-se ainda de ter desde há pouco a Casa de Miguel Torga. Esta é a casa onde viveu Miguel Torga, que pelo menos é um escritor conhecido. Mas, no que respeita a Torga, já há em contrução na sua terra natal uma grande casa, com forte apoio do governo, que pretende promover o desenvolvimento regional num sítio que dele mais carece. Qualquer coisa em Coimbra na mesma linha não tem sequer comparação com o projecto transmontano (além da confusão de já haver um outro projecto com o nome de Torga em Coimbra, o Forum Miguel Torga, na Estação Nova, do qual pouco se sabe). De facto, a proliferação de pequenos projectos dedicados à escrita e aos escritores é contraprudecente. Tais projectos não têm capacidade de atrair público em número suficiente. Não têm massa crítica para originar grandes financiamentos. Não têm meios para gerir o seu parco património. O mau exemplo dos pequenos museus municipais de Coimbra devia servir de lição. Querer pequenas coisas avulsas e desligadas, sem dimensão (nem sequer para estacionamento!), apenas revela uma visão e uma ambição pequenas. Porque quererá Coimbra ser uma cidade das coisas pequenas?
Que podiam Coimbra e o país (os dois têm de estar muito mais unidos do que estão!) fazer na sua Casa do Conhecimento? Vejo-a como um grande centro acolhedor da população de Coimbra e de fora, a começar pelos jovens que moram ou vêm à cidade. Vejo-a como um espaço de inclusão social que forneça possibilidades de desenvolvimento pessoal, académico e profissional. Vejo-a como um espaço que nos mostra uma história cultural muito rica, um espaço que preserva a memória dos livros e dos autores (Coimbra tem sido e é o sítio do país com mais livros por habitante, com mais autores por habitante, com mais edições por habitante). Vejo-a como um sítio que sabe juntar o velho (guardando devidamente os tesouros mais preciosos) e o novo (uma biblioteca com o melhor da tecnologia, que possa ser usufruída por todos, em todo o lado, com um simples clique). Vejo-a como um lugar onde se celebra a escrita e os escritores (que leva mais longe e a mais gente a obra dos muitos escritores ligados a Coimbra, cujo inventário está aliás por fazer) por meio de eventos imaginativos. Vejo-a como um sítio de indústria e comércio culturais, com um auditório que permita debates, encontros com escritores e lançamento de livros, e espaços para exposições, lojas, feiras do livro (a que há é muito pobre!) e oficinas especializadas que permitam os muitos restauros que são precisos.
Coimbra precisa urgentemente, como de pão para a boca, de um grande projecto cultural que a vitalize e lhe dê esperança. Hoje em dia é pela cultura que as cidades se regeneram – e Coimbra bem precisa dessa regeneração. Estou-me a lembrar do exemplo de Bilbau, cidade que foi impulsionada com o Museu Guggenheim. Mas lembro-me tambem do exemplo do Porto, onde o Museu de Serralves tem sido um êxito extraordinário. Coimbra já possui, embora possa não ter consciência plena disso, um grande projecto: é a candidatura da Universidade a Património Mundial da Humanidade, um projecto que deveria mobilizar ainda mais a Universidade e a cidade. Está na altura de dar mais consistência a esse projecto. Património é, além dos edifícios históricos, também a bibliografia e a documentação. Os nossos acervos nessa área são de tal modo ricos que merecem figurar em lugar de maior destaque na candidatura. Aliás, a Universidade de Coimbra teve um papel inquestionável na expansão e defesa da língua portuguesa no mundo, a língua que se encontra registada nas nossas bibliotecas e arquivos. Estou convencido que, se não soubermos projectar para o futuro o melhor do nosso passado, assegurando um espaço digno para os espólios que nos estão confiados, essa candidatura não terá o sucesso que deveria ter. Uma universidade e uma cidade renovadas, abertas ao país e ao mundo, precisam de um espaço-âncora na área que mais as distingue do resto do país e do mundo. Esse espaço devia ser, na minha opinião e pelas razões que resumi, a Casa do Conhecimento (chamem-lhe o que quiserem se não gostarem do nome). Claro que um projecto deste tipo só faz sentido se houver uma vontade colectiva que o sustente. Estou certo que a participação dos cidadãos enriquecerá o projecto e dar-lhe-á o melhor futuro.
Professor da Universidade de Coimbra e Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Se há uma área em que Coimbra é particularmente forte é a área dos livros e das bibliotecas e arquivos. Basta pensar na Biblioteca Joanina, uma das mais belas do mundo, repleta com quase cem mil livros antigos. Mas pode-se pensar que o total de volumes das cerca de 90 bibliotecas da Universidade de Coimbra é de mais de dois milhões, com cerca de metade localizados na Biblioteca Geral, um vasto e rico património que só é comparável ao da Biblioteca Nacional. Pode-se ainda pensar na Biblioteca Municipal, com os seus cerca seiscentos mil volumes, que oferece serviços especiais, como os de fonoteca, ludoteca, etc. Assim, o total de volumes de uma grande biblioteca virtual da Universidade e da cidade é de cerca de três milhões de volumes. É fácil por um protocolo de colaboração garantir condições de boa colaboração e sinergia sem discutir questões que são aliás indiscutíveis de propriedade, assim como de localização física das bibliotecas especializadas. Alguns dos conteúdos desses fundos são únicos no país e no mundo. Outros são repetidos, o que deveria facilitar a sua circulação. Mas, além das bibliotecas, pode-se ainda pensar, por se tratar de uma mais-valia próxima, nos valiosos Arquivos da Universidade e Municipal. Para não falar também das editoras e imprensas da cidade e região. E das publicações periódicas, com enorme tradição. E das livrarias e antiquários. E das artes gráficas, como a tipografia e o design. E dos cursos em ciências da informação e da documentação, que em Coimbra têm história.
A Biblioteca Joanina da Universidade está construída sobre uma prisão medieval. Esse espaço, que serviu outrora como prisão académica, está hoje aberto ao público. Os livros deixaram, porém, a certa altura de caber na Biblioteca Joanina. Já fez 50 anos o "novo" edifício da Biblioteca Geral, em frente à Faculdade de Letras. Esta Biblioteca foi construída sobre a antiga Faculdade de Letras, que por sua vez se ergueu sobre o Colégio de São Paulo Apóstolo. E ainda bem que é assim: o novo tem sempre de subir para os ombros do velho, como um filho que sobe aos ombros do pai para ver mais longe.
Agora está na hora de o novo subir mais uma vez para os ombros do velho. A Biblioteca Geral, a segunda biblioteca do país, está a rebentar pelas costuras. Não cabe lá praticamente mais nada, repleta como está pelas permanentes entregas do depósito legal e por numerosas incorporações e doações (uma das mais importantes foi a da Biblioteca e Arquivo do Instituto de Coimbra, a academia que existiu em Coimbra). Também a Biblioteca Municipal, que tem desempenhado um notável papel na leitura pública (foi a minha biblioteca na juventude e muito lhe devo!) está hoje limitada num sítio onde, por também receber depósito legal, tem dificuldade em caber: a Casa da Cultura, uma casa datada que tem hoje reduzida funcionalidade.
Para onde ir? Pois o centenário mas elegante edifício da Cadeia Penitenciária de Coimbra, mesmo às portas da Universidade e quase colado à Casa da Cultura entre o Jardim de Santa Cruz e o Jardim Botânico, vai ficar devoluto com a transferência da cadeia para instalações novas nos arredores de Coimbra. Deve ser a Casa do Conhecimento de que Coimbra - a Cidade do Conhecimento - precisa. Esta ideia, que propus publicamente há já alguns anos, foi acarinhada pelo Reitor da Universidade de Coimbra e, de início, pelo Presidente da Câmara Municipal. Num processo de sinergia da Universidade com a Câmara Municipal, a cidade poderá assim vir a ter a maior biblioteca do país, uma biblioteca com dimensão nacional e internacional, num espaço com interior moderno e equipada com as mais modernas tecnologias. Tal como outrora na Biblioteca Joanina, a liberdade poderá crescer onde não existia. Não é razoável que haja em Coimbra, distanciados por escassas centenas de metros, dois sítios onde é recebido e tratado o mesmo depósito legal. De resto, está prevista a redução em breve das entregas desse depósito pela Biblioteca Nacional, passando a ficar apenas num sítio em Coimbra.
O espaço da Penitenciária é muito amplo (e há muito espaço por baixo para guardar originais depois de devidamente tratados e digitalizados). Portanto, a Casa do Conhecimento poderá também ser um espaço para o Arquivo da Universidade (que também é Distrital) e para o Arquivo Municipal, actualmente também sem espaços suficientes e a funcionar em condições abaixo do desejável. E, derrubados os muros da prisão, há espaço para criar uma faixa verde que una os referidos jardins, fazendo com que a cidade seja atravessada, da Praça da República à Quinta das Lágrimas (passando pelo Jardim Botânico e pelo Parque Verde), por um extenso parque que fará as delícias dos locais e dos visitantes.
Muita gente tem acarinhado esta ideia, que reúne duas coisas que têm faltado a Coimbra no domínio cultural - visão e ambição. Algumas vozes, embora reconhecendo a necessidade de espaço para as bibliotecas e da sua frutuosa colaboração, e a necessidade de conservar o espaço histórico do cárcere, defendem que o edifício da prisão deve ter outra finalidade e que a Casa do Conhecimento devia ser instalada noutro lado, como o Quartel de Santana, ou mesmo construída de raiz, quiçá numa zona da periferia que permita "fazer cidade". Pode ser até que tenham razão, mas convém quanto antes discutir este assunto abertamente e realizar os necessários estudos técnicos.
O certo é que a ideia na prática não tem nos últimos tempos avançado, devido em boa parte à situação de paralisia em que se encontra a Câmara Municipal no domínio cultural. Não, não é só nas artes que ela está parada. É também nas letras, no que diz respeito à escrita e à leitura. Chega a ser confrangedor não haver uma única ideia cultural do lado da Câmara que mobilize os cidadãos. E é tambem confrangedor que a Câmara, não tendo ideias próprias, não ouça as ideias alheias. Pela minha parte, da única vez em que a cidade me chamou para discutir a Casa do Conhecimento, fiquei desconsolado com o baixo nível da discussão: nem sequer havia um arquitecto para o projecto (a autarquia só tinha um esboco feito por um seu desenhador!) e nem sequer foram estudados projectos internacionais do mesmo tipo. Esta Câmara, na qual de início depositei esperanças, é surda e muda em tudo o que à cultura diz respeito.
E porque não me calo? E porque é que, felizmente, outros cidadãos de Coimbra, amigos da cultura, não se calam? Porque Coimbra e o país merecem mais e merecem melhor. A Câmara Municipal tem adoptado, no plano cultural, uma atitude miserabilista, queixando-se dos desfavores do governo quando se deveria queixar em primeiro lugar e sobretudo de si própria. Não tem mostrado nem visão nem ambição! O governo não pode apoiar planos que não existem e o plano da Casa do Conhecimento, na prática, não existe para o governo. Aparentemente não existe sequer para a Câmara, em contradição com as afirmações iniciais do seu responsável. Também não tem, em alternativa, qualquer outro plano coerente. Em contraste, outras cidades têm grandes planos de investimento cultural e obtêm consideráveis apoios para eles. Basta olhar para os exemplos da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, da autoria do arquitecto Siza Vieira, ou da Biblioteca Eduardo Lourenço, na Guarda, esta ainda por inaugurar.
Diz a Câmara que não tem Casa do Conhecimento, mas tem uma ou vai ter uma Casa da Escrita. Gaba-se de pouca coisa e mais valia, neste caso, permanecer calada. A dita Casa da Escrita é uma coisa pequena, quase de vão-de-escada: pouca coisa lá vai caber. Trata-se da casa de João José Cochofel, um escritor que, com todo o respeito que merece, não é um grande nome nacional e muito menos internacional. E a Câmara gaba-se ainda de ter desde há pouco a Casa de Miguel Torga. Esta é a casa onde viveu Miguel Torga, que pelo menos é um escritor conhecido. Mas, no que respeita a Torga, já há em contrução na sua terra natal uma grande casa, com forte apoio do governo, que pretende promover o desenvolvimento regional num sítio que dele mais carece. Qualquer coisa em Coimbra na mesma linha não tem sequer comparação com o projecto transmontano (além da confusão de já haver um outro projecto com o nome de Torga em Coimbra, o Forum Miguel Torga, na Estação Nova, do qual pouco se sabe). De facto, a proliferação de pequenos projectos dedicados à escrita e aos escritores é contraprudecente. Tais projectos não têm capacidade de atrair público em número suficiente. Não têm massa crítica para originar grandes financiamentos. Não têm meios para gerir o seu parco património. O mau exemplo dos pequenos museus municipais de Coimbra devia servir de lição. Querer pequenas coisas avulsas e desligadas, sem dimensão (nem sequer para estacionamento!), apenas revela uma visão e uma ambição pequenas. Porque quererá Coimbra ser uma cidade das coisas pequenas?
Que podiam Coimbra e o país (os dois têm de estar muito mais unidos do que estão!) fazer na sua Casa do Conhecimento? Vejo-a como um grande centro acolhedor da população de Coimbra e de fora, a começar pelos jovens que moram ou vêm à cidade. Vejo-a como um espaço de inclusão social que forneça possibilidades de desenvolvimento pessoal, académico e profissional. Vejo-a como um espaço que nos mostra uma história cultural muito rica, um espaço que preserva a memória dos livros e dos autores (Coimbra tem sido e é o sítio do país com mais livros por habitante, com mais autores por habitante, com mais edições por habitante). Vejo-a como um sítio que sabe juntar o velho (guardando devidamente os tesouros mais preciosos) e o novo (uma biblioteca com o melhor da tecnologia, que possa ser usufruída por todos, em todo o lado, com um simples clique). Vejo-a como um lugar onde se celebra a escrita e os escritores (que leva mais longe e a mais gente a obra dos muitos escritores ligados a Coimbra, cujo inventário está aliás por fazer) por meio de eventos imaginativos. Vejo-a como um sítio de indústria e comércio culturais, com um auditório que permita debates, encontros com escritores e lançamento de livros, e espaços para exposições, lojas, feiras do livro (a que há é muito pobre!) e oficinas especializadas que permitam os muitos restauros que são precisos.
Coimbra precisa urgentemente, como de pão para a boca, de um grande projecto cultural que a vitalize e lhe dê esperança. Hoje em dia é pela cultura que as cidades se regeneram – e Coimbra bem precisa dessa regeneração. Estou-me a lembrar do exemplo de Bilbau, cidade que foi impulsionada com o Museu Guggenheim. Mas lembro-me tambem do exemplo do Porto, onde o Museu de Serralves tem sido um êxito extraordinário. Coimbra já possui, embora possa não ter consciência plena disso, um grande projecto: é a candidatura da Universidade a Património Mundial da Humanidade, um projecto que deveria mobilizar ainda mais a Universidade e a cidade. Está na altura de dar mais consistência a esse projecto. Património é, além dos edifícios históricos, também a bibliografia e a documentação. Os nossos acervos nessa área são de tal modo ricos que merecem figurar em lugar de maior destaque na candidatura. Aliás, a Universidade de Coimbra teve um papel inquestionável na expansão e defesa da língua portuguesa no mundo, a língua que se encontra registada nas nossas bibliotecas e arquivos. Estou convencido que, se não soubermos projectar para o futuro o melhor do nosso passado, assegurando um espaço digno para os espólios que nos estão confiados, essa candidatura não terá o sucesso que deveria ter. Uma universidade e uma cidade renovadas, abertas ao país e ao mundo, precisam de um espaço-âncora na área que mais as distingue do resto do país e do mundo. Esse espaço devia ser, na minha opinião e pelas razões que resumi, a Casa do Conhecimento (chamem-lhe o que quiserem se não gostarem do nome). Claro que um projecto deste tipo só faz sentido se houver uma vontade colectiva que o sustente. Estou certo que a participação dos cidadãos enriquecerá o projecto e dar-lhe-á o melhor futuro.