Vice-Reitora da Universidade de Coimbra e Conservadora da Casa-Museu Miguel Torga
1. A aquisição pela Câmara Municipal de Coimbra da casa habitada durante quarenta anos por Miguel Torga no bairro dos Olivais consagrava a pertença deste espaço ao património cultural da cidade. Depois das necessárias obras de restauração do edifício e do jardim, a casa, baptizada “Casa-Museu”, abria as portas em Agosto de 2007, no dia em que se comemorava o centenário do nascimento do escritor.
Designada, por vontade de Clara Rocha, para “conservar” a casa, submeti ao Senhor Presidente da Câmara um projecto onde expunha a minha concepção da futura utilização do espaço, ao mesmo tempo “poético” (casa de poeta onde o visitante pode, na presença de objectos e móveis escolhidos, reencontrar um pouco do espírito da obra), “dinâmico” (lugar de animação, de exposição e de diálogo) e escritural (casa de escrita a estudar e a ensaiar). Escolhi um pequeno “comité de direcção” e redigi os seus Estatutos que estão ainda à espera de aprovação por parte da Câmara Municipal.
Entretanto, a casa vai recebendo um público regular, composto por visitantes individuais ou grupos de natureza e proveniência diversas (turistas nacionais e estrangeiros, alunos do secundário, associações de 3ª idade…), atraídos pelo nome de Miguel Torga. A Câmara assegura a visita da casa, através da permanência de funcionárias do Serviço Cultural, e o tratamento do espólio, a cargo de uma bibliotecária.
Bem depressa me dei conta de que não tinha o domínio da situação. Propriedade municipal, a Casa releva financeiramente da autoridade última do Vereador da Cultura, situação que tem causado infindáveis motivos e ocasiões de frustração… Refiro apenas que, até à data, as únicas iniciativas tomadas (publicação de um folheto, fixação de uma tarifa de entrada…) escaparam não só ao meu controle como também ao meu conhecimento. Soube recentemente (e indirectamente) que um orçamento havia sido atribuído à Casa-Museu e que a sua gestão seria feita com a mediação (autorização?) do Vereador.
2. As dificuldades circunstanciais de percurso tiveram o mérito de me obrigar a uma ponderação diferente da essência do projecto, no quadro da política cultural da cidade.
Reavaliada a situação, fui levada a reflectir sobre 1) a pequena dimensão de um espaço desta natureza; 2) a incerta capacidade da sua intervenção cultural na cidade; 3) o isolamento/compartimentação face a outros espaços culturais da cidade, e consequentemente a interrogar-me sobre 1) qual deve ser a natureza, função e missão da Casa onde Miguel Torga viveu; 2) e como inserir o projecto da casa num plano de desenvolvimento estratégico para a cidade de Coimbra.
a) Tal como existe, a Casa Miguel Torga não pode – nem parece desejável – funcionar como mais uma pequena “casa da cultura”.
A ideia inicial de espaço presente de um quotidiano de cultura, de abertura da casa à realização de encontros de escritores, tertúlias literárias, debates e apresentação de livros, colóquios e seminários, representações teatrais e fílmicas, não é concretizável sem a construção (prevista) de um auditório. Além disso, para que público? Com que objectivo? Com que orientação temática (ou conceptual)? Com que enquadramento e periodicidade? De costas voltadas para as outras casas de escritores? Para ocupar que “espaço” de representação cultural?
Tem razão Carlos Fiolhais quando refere o carácter redundante em relação à “construção na sua terra natal uma grande casa, com forte apoio do governo, que pretende promover o desenvolvimento regional num sítio que dele mais carece. Qualquer coisa em Coimbra na mesma linha não tem sequer comparação com o projecto transmontano.”
E estou ainda inteiramente de acordo em considerar que “de facto, a proliferação de pequenos projectos dedicados à escrita e aos escritores é contraproducente. Tais projectos não têm capacidade de atrair público em número suficiente. Não têm massa crítica para originar grandes financiamentos. Não têm meios para gerir o seu parco património”.
b) A designação de Casa-Museu, incómoda e paralisante a vários níveis, passa então a fazer um certo sentido. Como todo o museu que conta uma história, a casa de Torga é a narrativa de 40 anos de vida do homem e do escritor. Indo ao encontro do passado, ela dá a conhecer o espaço vivido pelo escritor, reconstitui alguns dos lugares significativos da sua intimidade, mostra os móveis e os objectos que as suas mãos tocaram, desvenda um pouco da sua privacidade, evoca um tempo e uma alma.
Esta relação, que poderá ser considerada fútil ou trivial, deixa entrever a existência, entre o homem e a casa, de algo como um afinidade electiva, resultando o encontro de ambos de uma decisão que ultrapassa o puro acaso. Mas, da residência citadina do Dr. Adolfo Rocha – diferente da casa de S. Martinho de Anta, tão rica em fluidos magnéticos - que mostrar ao público e sobretudo que lhe demonstrar?
Mas, a partir de que proxémica e de que “teoria paralelística” poderemos ilustrar o movimento que, do corpo ao espírito e do espírito ao corpo, transforma em texto a inquietude da alma? Por outras palavras, haverá entre o interior habitado pelo escritor e a sua intimidade espiritual uma conexão perceptível? O escritório do poeta em nada se assemelha ao atelier do pintor, e se o piano do compositor apresenta mais analogias com o teclado da máquina de escrever, basta um único acorde para despertar todo um universo musical enquanto que a vista de um manuscrito, mesmo lavrado de cortes e de emendas, só de muito longe evoca o drama, tão torguiano, da inspiração.
E é aqui que encontramos uma enorme contradição entre a perspectiva museográfica e o habitus torguiano. Se, por definição, um museu deve poder oferecer um espectáculo à curiosidade, uma casa-museu parece prestar-se ainda mais ao voyeurismo dos visitantes. Ora, Torga recusou-nos, de antemão, esse prazer. O seu escritório não é o de um homem de letras, repleto de imagens e de ícones. Ele próprio sublinhava desde 1949 essa repugnância pela ostentação: “Não há dúvida nenhuma que sou um poeta de paredes lisas. No escritório dum camarada que visitei hoje, coberto de fotografias assinadas, tive a impressão de estar no gabinete dum caçador de feras, que mandasse curtir as peles das vítimas e as exibisse como troféus. A do leão com uma dedicatória majestática, a do hipopótamo com os olhos na posteridade, a do chacal ainda a sonhar com cadáveres…” (D. V, 100).
A célula do monge franciscano convém-lhe ainda melhor do que a torre de Montaigne, cujo isolamento acontece invejar. Talvez seja então possível demonstrar que a teatralização do gesto de escrever não requer aqui outro cenário senão o vazio do palco povoado apenas pela radicalidade do acto de escrever.
c) Torga deixou clara uma vontade de total despojamento: “Não, quando eu morrer queimem quanto escrevi e não publiquei. Renego todas as cartas, todos os manuscritos, todos os retratos, todas as anedotas, todas as recordações e todo o rol da minha roupa suja.” (D. V, 100) Que um escritor deseje a destruição da sua “opus imperfectum”, não é um facto excepcional. Mas querer destruir o rasto da sua contingência releva de uma espécie de jansenismo muito mais insólito e que complica singularmente a tarefa de uma “conservadora” de museu. Torga não reconhece a autenticidade do seu eu senão nos livros publicados (e publicados por ele), tudo lhe parecendo insignificante fora desse “monumentum aere perennius”.
Felizmente a sua vontade não foi respeitada: a Casa dispõe de um importante espólio - documentos, cartas, manuscritos, 1as edições, fotografias, filmes, recortes de imprensa nacional e estrangeira, traduções - e é legítimo que possa constituir-se como Centro de Estudos, destinado a acolher todos quantos pretendam estudar a época e os escritos do autor.
Se a cidade apostar nos livros, como quer Carlos Fiolhais, então a Casa Torga faz sentido enquanto lugar de encontro com a escrita - casa de escrita projectada no futuro que a criação literária implica.
Assim haja, por parte dos responsáveis, vontade de fazer - e não de desfazer -, sentido estético e ético e não apenas sede de protagonismo básico e mediático!
18 de Abril de 2008
Designada, por vontade de Clara Rocha, para “conservar” a casa, submeti ao Senhor Presidente da Câmara um projecto onde expunha a minha concepção da futura utilização do espaço, ao mesmo tempo “poético” (casa de poeta onde o visitante pode, na presença de objectos e móveis escolhidos, reencontrar um pouco do espírito da obra), “dinâmico” (lugar de animação, de exposição e de diálogo) e escritural (casa de escrita a estudar e a ensaiar). Escolhi um pequeno “comité de direcção” e redigi os seus Estatutos que estão ainda à espera de aprovação por parte da Câmara Municipal.
Entretanto, a casa vai recebendo um público regular, composto por visitantes individuais ou grupos de natureza e proveniência diversas (turistas nacionais e estrangeiros, alunos do secundário, associações de 3ª idade…), atraídos pelo nome de Miguel Torga. A Câmara assegura a visita da casa, através da permanência de funcionárias do Serviço Cultural, e o tratamento do espólio, a cargo de uma bibliotecária.
Bem depressa me dei conta de que não tinha o domínio da situação. Propriedade municipal, a Casa releva financeiramente da autoridade última do Vereador da Cultura, situação que tem causado infindáveis motivos e ocasiões de frustração… Refiro apenas que, até à data, as únicas iniciativas tomadas (publicação de um folheto, fixação de uma tarifa de entrada…) escaparam não só ao meu controle como também ao meu conhecimento. Soube recentemente (e indirectamente) que um orçamento havia sido atribuído à Casa-Museu e que a sua gestão seria feita com a mediação (autorização?) do Vereador.
2. As dificuldades circunstanciais de percurso tiveram o mérito de me obrigar a uma ponderação diferente da essência do projecto, no quadro da política cultural da cidade.
Reavaliada a situação, fui levada a reflectir sobre 1) a pequena dimensão de um espaço desta natureza; 2) a incerta capacidade da sua intervenção cultural na cidade; 3) o isolamento/compartimentação face a outros espaços culturais da cidade, e consequentemente a interrogar-me sobre 1) qual deve ser a natureza, função e missão da Casa onde Miguel Torga viveu; 2) e como inserir o projecto da casa num plano de desenvolvimento estratégico para a cidade de Coimbra.
a) Tal como existe, a Casa Miguel Torga não pode – nem parece desejável – funcionar como mais uma pequena “casa da cultura”.
A ideia inicial de espaço presente de um quotidiano de cultura, de abertura da casa à realização de encontros de escritores, tertúlias literárias, debates e apresentação de livros, colóquios e seminários, representações teatrais e fílmicas, não é concretizável sem a construção (prevista) de um auditório. Além disso, para que público? Com que objectivo? Com que orientação temática (ou conceptual)? Com que enquadramento e periodicidade? De costas voltadas para as outras casas de escritores? Para ocupar que “espaço” de representação cultural?
Tem razão Carlos Fiolhais quando refere o carácter redundante em relação à “construção na sua terra natal uma grande casa, com forte apoio do governo, que pretende promover o desenvolvimento regional num sítio que dele mais carece. Qualquer coisa em Coimbra na mesma linha não tem sequer comparação com o projecto transmontano.”
E estou ainda inteiramente de acordo em considerar que “de facto, a proliferação de pequenos projectos dedicados à escrita e aos escritores é contraproducente. Tais projectos não têm capacidade de atrair público em número suficiente. Não têm massa crítica para originar grandes financiamentos. Não têm meios para gerir o seu parco património”.
b) A designação de Casa-Museu, incómoda e paralisante a vários níveis, passa então a fazer um certo sentido. Como todo o museu que conta uma história, a casa de Torga é a narrativa de 40 anos de vida do homem e do escritor. Indo ao encontro do passado, ela dá a conhecer o espaço vivido pelo escritor, reconstitui alguns dos lugares significativos da sua intimidade, mostra os móveis e os objectos que as suas mãos tocaram, desvenda um pouco da sua privacidade, evoca um tempo e uma alma.
Esta relação, que poderá ser considerada fútil ou trivial, deixa entrever a existência, entre o homem e a casa, de algo como um afinidade electiva, resultando o encontro de ambos de uma decisão que ultrapassa o puro acaso. Mas, da residência citadina do Dr. Adolfo Rocha – diferente da casa de S. Martinho de Anta, tão rica em fluidos magnéticos - que mostrar ao público e sobretudo que lhe demonstrar?
Mas, a partir de que proxémica e de que “teoria paralelística” poderemos ilustrar o movimento que, do corpo ao espírito e do espírito ao corpo, transforma em texto a inquietude da alma? Por outras palavras, haverá entre o interior habitado pelo escritor e a sua intimidade espiritual uma conexão perceptível? O escritório do poeta em nada se assemelha ao atelier do pintor, e se o piano do compositor apresenta mais analogias com o teclado da máquina de escrever, basta um único acorde para despertar todo um universo musical enquanto que a vista de um manuscrito, mesmo lavrado de cortes e de emendas, só de muito longe evoca o drama, tão torguiano, da inspiração.
E é aqui que encontramos uma enorme contradição entre a perspectiva museográfica e o habitus torguiano. Se, por definição, um museu deve poder oferecer um espectáculo à curiosidade, uma casa-museu parece prestar-se ainda mais ao voyeurismo dos visitantes. Ora, Torga recusou-nos, de antemão, esse prazer. O seu escritório não é o de um homem de letras, repleto de imagens e de ícones. Ele próprio sublinhava desde 1949 essa repugnância pela ostentação: “Não há dúvida nenhuma que sou um poeta de paredes lisas. No escritório dum camarada que visitei hoje, coberto de fotografias assinadas, tive a impressão de estar no gabinete dum caçador de feras, que mandasse curtir as peles das vítimas e as exibisse como troféus. A do leão com uma dedicatória majestática, a do hipopótamo com os olhos na posteridade, a do chacal ainda a sonhar com cadáveres…” (D. V, 100).
A célula do monge franciscano convém-lhe ainda melhor do que a torre de Montaigne, cujo isolamento acontece invejar. Talvez seja então possível demonstrar que a teatralização do gesto de escrever não requer aqui outro cenário senão o vazio do palco povoado apenas pela radicalidade do acto de escrever.
c) Torga deixou clara uma vontade de total despojamento: “Não, quando eu morrer queimem quanto escrevi e não publiquei. Renego todas as cartas, todos os manuscritos, todos os retratos, todas as anedotas, todas as recordações e todo o rol da minha roupa suja.” (D. V, 100) Que um escritor deseje a destruição da sua “opus imperfectum”, não é um facto excepcional. Mas querer destruir o rasto da sua contingência releva de uma espécie de jansenismo muito mais insólito e que complica singularmente a tarefa de uma “conservadora” de museu. Torga não reconhece a autenticidade do seu eu senão nos livros publicados (e publicados por ele), tudo lhe parecendo insignificante fora desse “monumentum aere perennius”.
Felizmente a sua vontade não foi respeitada: a Casa dispõe de um importante espólio - documentos, cartas, manuscritos, 1as edições, fotografias, filmes, recortes de imprensa nacional e estrangeira, traduções - e é legítimo que possa constituir-se como Centro de Estudos, destinado a acolher todos quantos pretendam estudar a época e os escritos do autor.
Se a cidade apostar nos livros, como quer Carlos Fiolhais, então a Casa Torga faz sentido enquanto lugar de encontro com a escrita - casa de escrita projectada no futuro que a criação literária implica.
Assim haja, por parte dos responsáveis, vontade de fazer - e não de desfazer -, sentido estético e ético e não apenas sede de protagonismo básico e mediático!
18 de Abril de 2008