Vistas largas, por favor!

João Boavida
(Diário As Beiras, 5 de Fevereiro de 2008)


A cultura é a grande força dos povos porque é o seu alimento e a sua energia. Os políticos raramente levam isto a sério, dominados pelo económico, pelo político propriamente dito, e agora pela promoção da imagem, que tudo pode dourar, como julgam.

Muitos deles até dispensariam a cultura se não fosse o mau efeito que dá. É aquilo em que têm que gastar verbas sem vontade nenhuma, ou porque não dá nas vistas, ou porque não dá votos, ou porque é só para elites, ou porque o povo é indiferente, etc. Tudo raciocínios inquinados que reduzem a realidade e atrofiam os povos. E onde o factor educativo não entra, onde a qualificação das massas não é rentável, onde não compete ao político promover o seu povo mas dar-lhe aquilo que pensa que o povo quer, enfim, desastres educativos e sociais em cadeia.

A cultura sempre foi o calcanhar de Aquiles desta Autarquia, pelo menos aos olhos do cidadão comum. As coisas têm-se agravado porque se insistiu em certas opções, e em política é quase tão importante acertar à primeira como perceber o erro a tempo. O que parece indiciar que a questão é mais vasta e enquadra-se naquela ideia muito liberal, de que a cultura deve governar-se a si própria, gerar as suas receitas, e que não compete ao erário público apoiar formas mais avançadas ou inovadoras de cultura ou de arte, porque isso, sendo para elites, não beneficia as maiorias, nem dá votos. Puro engano, a história está cheia de exemplos ao contrário.

É certo que há inovações culturais inaceitáveis na perspectiva de quem tem que dar subsídios. Mas não confundir isto com a obrigação de perceber que a cultura de um povo é um processo contínuo que vem do passado e aponta ao futuro e que se joga interactivamente em vários tabuleiros, níveis e velocidades. Se há um sentido retrospectivo da cultura que vai às raízes e às manifestações culturais em que o povo foi criado, onde se reconhece e que deve ser preservado e qualificado, há um sentido criativo, inovador que projecta essa mesma cultura para o futuro, que constantemente a vitaliza, criando novas formas, eventualmente estranhas, mas sem as quais a sua base cultural rapidamente estiola e fossiliza acabando por definhar.

Esta articulação entre passado e futuro é difícil se faltar sensibilidade para concepções mais arrojadas e se estivermos demasiado presos a fórmulas estabelecidas. Mas os dados deste jogo estão lançados desde há milénios, são muito mais profundos do que se pensa e não é um qualquer poder autárquico que os pode alterar; suicida-se se persistir na cegueira.

Coimbra não pode viver culturalmente atrofiada: é afronta ao seu passado e hipoteca do seu futuro; tem responsabilidades nacionais, ou melhor, em termos culturais a sua ambição deve ser nacional, não pode limitar-se à etnografia e ao folclore, por muito que isso seja respeitável. Não chega. Há mais de um ano, chamei aqui a atenção para uma ideia de maestro Virgílio Caseiro segundo a qual Coimbra tinha obrigação de se transformar em centro de criação cultural. Já o foi noutras épocas, e de que maneira! É o peso do seu nome que a isso obriga. No contexto actual das cidades portuguesas, feito de forças cruzadas que se atraem e repelem, tendo em conta a macrocefalia, a competição e os processos de promoção e de despromoção à vista de todos, a estratégia da Autarquia de Coimbra devia ser predominantemente cultural, e nesta, forte e sistematicamente projectiva e inovadora. Repito: a sua dinâmica cultural deve ter uns tantos acontecimentos anuais de âmbito nacional. Se não há condições para isso, lutem por elas até conseguir, o grande objectivo deve ser esse. Um poder autárquico que não perceba isto está a matar a cidade.